III - Sou ele, sou eu
Certa vez, estava eu, praticando e observando minha mente. Assim, muitas questões, lembranças e desejos fluíam sem muito sentido, foi quando me dei conta que pensava sobre a morte do meu pai e sobre a dor da saudade que provavelmente sempre sentirei. Fazia pouco tempo da sua morte, alguns meses. Sempre fui muito próximo a ele e sinto que há uma conexão muita estreita que perdura após sua partida. Nunca chorei sua ausência, o que me entristecia era ver a dor nos semblantes dos amigos próximos e da família. Nunca foi por ter partido, mas sim, pela dor ao próximo. Então, voltemos para a prática.
Meus pensamentos pairavam sobre a existência. Algo tão complexo e tão simples. Sobre o segredo da vida. Muitos mestres, iogues, líderes espirituais, entre outros, são unânimes em dizer que o segredo está na vida, VIVER. Dentro do Zen não há dicotomia. Vida e morte, ou seja, não há distinção nem separação. Há apenas vida e morte. É muito difícil para nós entendermos. Vivemos em grupo; consumimos ideias, valores, princípios; consumimos a vida como nos foi dita, de modo social. Culturalmente construída para o reconhecimento da morte pensada de maneira isolada. Não conseguimos enxergar o ciclo da vida, as fases da vida, além da morte.
No início éramos vazio. Alan Watts, filósofo contemporâneo britânico, passou toda sua vida difundindo as filosofias asiáticas para o mundo ocidental, via o mundo como um grande sonho, entre suas oratórias gosto muito desta: “Tente imaginar como é dormir. Você se dá conta da escuridão? Seria de fato como você nunca tivesse existido. Não só você, mas todo o resto também. Você estaria naquele estado como se você nunca tivesse acontecido, e claro, não haveria problemas, não haveria arrependimento, nem tragédias, pois não haveria ninguém para vivenciá-las. Seria simplesmente NADA. Para sempre e nunca, pois não haveria futuro, nem passado, muito menos presente. Mas, o que nos preocupa é que a morte pode ser o fim de tudo, para sempre. Como se isso fosse algo para se preocupar. Antes de você nascer, existia esse mesmo NADA para sempre e mesmo assim você aconteceu e se você aconteceu uma vez, pode acontecer de novo. Então penso, que ao ultrapassar o outro estágio da vida, voltarei ao estado que estava antes de nascer. Não poderia eu acontecer novamente? O universo é misterioso, o que pode acontecer uma vez, pode acontecer de novo”. É evidente que um raio pode cair duas vezes num mesmo local, quiçá – muitas outras vezes.
Do NADA para o sonho. “Quando nascemos fomos programados a receber o que vocês nos empurraram...” Renato Russo e a Legião Urbana retrata muito bem nesse pequeno trecho da música Geração Coca-Cola a vida de gado que somos involuntariamente emersos. E, de fato, somos conduzidos num caminhar obscuro, num caminhar sonâmbulo. Viver sem estar acordado. Perdoem-me os grandes mestre, iogues e líderes espirituais, não faz muito sentido viver a vida e continuar dormindo. E é isso que me move a escrever e a praticar.
Após nascer passamos por diversos estágios, e um desses estágios é caminhar da infância para a vida adulta. Quando adultos nos relacionamos instintivamente para a perpetuação e sobrevivência da espécie, como diria Schopenhauer, o filósofo do amor. E é no fruto da perpetuação da espécie que quero chegar.
Filhos. Sim. Quando praticava profundamente e a memória de meu pai veio subitamente me entristecer pude perceber que a presença que sempre senti estava em mim. Sempre estive diante de um espelho. Minhas células, meu DNA, minhas memórias são representações e heranças que meu pai deixou vivo em mim e é por isso que sua presença é tão forte. Meu jeito, minha voz e o meu andar. Sou eu e sou ele. Quando olho para minhas filhas o vejo também lá e consigo ver além – Consigo me ver lá também, ver minha esposa, meu irmão, minha mãe etc., etc. O que estou tentando dizer é que estamos em tudo e em todos. Somos uma grande célula, uma grande barreira de coral. Somos um só e tenho certeza que meu pai vive em você, como você também vive nele. Não me lembro de como é dormir e da sensação do NADA, mas o que me conforta é que nesse momento sinto sua presença e a sua manifestação quântica e tudo volta a fazer sentido. E aos poucos vou despertando. Gasshô!