Arroz doce
Desde o começo dessa minha idade tenho estado saudosa. Da infância principalmente.
O arroz doce tem visitado frequentemente minha lembrança.
Tenho pensado muito na criança que eu era. Bicho do mato, tatuzinho mermo. Com um chapéu de palha que peguei sem autorização, mas que a vózinha determinou que poderia ser meu.
Lembro do sítio. Casa grande, simples, amarela (ou branca?). A cozinha com fogão de lenha cheio de grandes panelas. A mesa daquelas que dividem-se ao meio, que era de abrigo pra mim e Bruno fugindo dos primos mais velhos. Onde ele também podia tomar um ovo crú a contra gosto dos pais, mas com a proteção e aval da vózinha. A lavanderia que guardava os instrumentos de fazer queijo.
Lá fora, o tronco velho segurava a antena parabólica, o pequeno bosque ao lado da casa, o pé de colorau, algumas árvores compridas e desengonçadas, e a grande árvore com raízes que não obedeciam à ordem de viver embaixo da terra. Tinha a árvore bifurcada em frente à varanda, que era na verdade um grande estilingue. As duas goiabeiras: a nave maior que era propriedade do Samuel e do Digo e a nave menor compartilhada por mim e Bruno.
Os primos não ficavam no sítio o tempo todo.
A chegada deles era sempre alegria. Talita com uma franja brava, sempre uma princesa penteada. Rodrigo em sua função de primo mais velho atormentava os menores. Samuel era meu preferido. A gente ria, corria e comia muito. E Bruno era protegido e café-com-leite comigo. Tinha Corcel vermelho, Scort, Caminhonete vermelha, Passat branco (essa info precisa de confirmação por motivos de não tenho certeza). Os tios e os micro-shorts de futebol, barrigas ainda em formação. As tias, a mãe, a vó no calor da cozinha grande.
É natal. Minha tia briga com o Nenzinho porque quer o galho mais bonito do pinheiro- que ficava bem a uns 4 metros de altura. Mas a causa era nobre, pois o enfeites eram de chocolate.
O vô sempre austero, asseado, e a botina que cheirava a cocô de vaca trazendo qualquer coisa da horta (mandioca, talvez?): "tá descalça aqui? vai botar roupa. tá com as laranjinha de fora".
"Vem fia, a vó vai pôr doce". Arroz doce. Quente, moreno.. Cada um se servia como queria: no prato ou no copo. "No prato esfria mais rápido", disse meu pai. "No copo não faz bagunça. Aí, falei, ta derrubando" disse minha mãe. E o irmão dessa criança marrom, um bebê, que parecia vindo da realeza: gorducho de bochecha rosa e cabelo enrolado muito preto.
E é cheiro de arroz doce que eu sinto quando lembro de tudo isso.
E colocando isso em palavras me sinto a pessoa mais rica do mundo. A criança que fui podia sujar o pé, ser o próprio Tarzan fêmea, andar de bicicleta, usar shorts feito de calça antiga, pisar no marimbondo, quebrar o copo e ser consolada.