Carta à senhora

Veneza, 28 de Novembro de 1790

À senhora.

Cara senhora, é com muita dor no coração que envio-te esta. Minhas mãos amargam a cor da tinta que vos escrevo. Minhas latas não cabem mais papéis amassados, rasgados com o medo de errar o vocabulário. O meu corpo já não está em sintonia com o mundo, e nada está progredindo . Como servo, tomei a liberdade de escrever, mostrando minha preocupação com vossa senhoria. Se estás surpresa, sim, eu aprendi a ler e escrever com o Barão de Monte Belo, onde iniciei essa vida de serventia aos senhores.

Sei que passas um momento complicado e que decisões em sua vida foram tomadas muito rapidamente. Sei também que decidiu dedicar-se mais à seus aposentos , e que escolhestes continuar sua vida com o Barão Rover. Mas delicadamente e cordialmente pergunto-lhe : A que preço? Estás a quase dez anos com o Barão e ainda não sentiu o prazer da felicidade ! Nestes dez anos, sorriu pouco, gostou pouco e amou nada. Nestes dez anos viveu como meretriz do Barão. Acreditou que na senzala estavam havendo as danças, mas na hora do almoço, o barão tirava o pão dos escravos. Vossa mercê acreditou que era feliz e ainda colocou a culpa em vossa senhoria, dizendo a si mesma que precisava tentar mais e dedicar mais. A que preço, minha senhora? Estás pagando o preço da vida em troca de uma infelicidade. Estás buscando sentir amor por alguém que nunca despertou isso em vossa senhoria. Estás tentando amar alguém que a presenteia com lindas carruagens e aumenta cada vez mais o casarão, ao invés de presenteá-la com amor, carinho , dedicação e um pouco de liberdade.

Por muito tempo servi à senhora e fui fiel à missão que a mim foi dada. Cuidei de vossos cavalos, engordei vossos bois e ainda por cima, cuidei da senhora quando estava enferma. Enquanto estavas deitada no leito de vossa casa, o Barão viajava , sem data para voltar e sem mensageiros enviar. Até meus dons ocultos, revelei à senhora, que com muita atenção e carinho, me admirava.

Passei muito tempo ao lado de vossa senhoria, atendendo à vossa vontade, mas vi coisas dentro de vossa fazenda, que nunca tinha visto antes. Àquela noite em que estavas a receber convidados, o Barão não tirava os olhos da sua professora de piano, Catherine. Percebi que não estavas se importando muito e por Deus do céu, como vossa senhoria estava encantadora! Por falar em piano, terminastes aquela composição sobre o Lobo e a rosa? Estava ficando majestosa. De longe, à beira da janela, escutava e sentia todos os dias a maestria de vossas mãos.

Lembro-me também quando pedi licença às cozinheiras e por várias vezes preparei vosso alimento, com a maior dedicação. Foram momentos deslumbrantes, não é minha senhora? Porém não foram suficientes para demonstrar toda minha admiração e fidelidade por vossa mercê.

Como esta é uma mensagem de despedida, deixo aqui minhas últimas palavras, já que não tive tempo de ir à fazenda despedir-me :

Por incontáveis dias servi a vossa senhoria com total empenho e dedicação. Fui um ouvido quando precisavas desabafar e fui um ombro amigo quando precisavas chorar. Sei que não deu a importância suficiente à isso, quanto eu dei. Por isso, despeço-me aqui de todos os momentos que a vossa senhoria eu servi. Sou um homem dedicado, mas à outras senhoras me dedicar, eu não vou conseguir. Por todo esse tempo aprendi a amar meu trabalho, aprendi a sorrir. Por tanto tempo sonhei com ti . Por tanto tempo me peguei olhando os teus olhos. Por tanto tempo esperei a senhora pra partir. Por tanto tempo ouvi dizerdes que ali não ficava mais. Por tanto tempo trabalhei e trabalho para dar o melhor à senhora. Mas entendo que o casarão sem a senhora não funciona, e que os braços do Barão Rover são mais acolchoados e mais lisos. Minhas mãos, calejadas e desajeitadas já serviram de algo nas noites frias e sombrias. Mas meu desejo de me tornar Barão, começando do zero, não atraiu vossa senhoria. Com muita dor no coração despeço-me de tudo o que eu havia construído, mesmo que pouco. Neste pedaço de papel, despeço-me de toda alegria que um dia sonhei em ter. Neste pedaço de papel, revelo o amor incontrolável por ti. E para não ver sua infelicidade mais com o Barão Rover, deixo-lhe esta, como um símbolo de fidelidade, respeito, carinho e amor. À sombra daquela árvore ficará guardada pra sempre no mundo, aquilo que eu sempre quis vos dar. O meu mundo.

Que sejas feliz, e não me procures em outras fazendas, pois todo aquele amor que um dia eu quis te dar, está guardado em meu coração à quem realmente possa me amar.

Cordialmente,

Seu servo.

Caio Vieira
Enviado por Caio Vieira em 31/07/2018
Código do texto: T6405288
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