Você passa

Eu te toco com o olhar.

E o melhor de tudo é que você não tem ideia. Ou tem, mas muito vaga.

Tem... Tem sim.Contribui para isso o fato de eu não ser uma pessoa, digamos, muito discreta. E ninguém ignora o fato de ser lindo (e você é) por mais humilde que seja (e você também é).

Mas o que você não sabe é que esgota, apenas por existir, todas as infinitas possibilidades da minha pulsão escópica.

Te olho e basta.

Aliás, não basta.

Extrapola.

Porque te olhar é tudo.

Porque o dia está uma merda.

Porque eu vejo papéis por todo lado.

E pastas velhas. E documentos para os quais eu não consigo dar valor algum. E carimbos. E paredes brancas. E um extintor de incêndio que provavelmente não funciona.

Até que você passa...

Sorrindo! Sabe-se lá de que. Ou por que. As vezes até mesmo pra mim. Mas se não for, não faz a menor diferença. Porque o importante é que você passa. E eu te olho. E o mundo volta ao eixo. E milhares de coisas voltam a fazer sentido.

E eu fico grata pelo sentido da visão.

E pela memória.

Uma vez que também é muito confortante quando, com você fora do meu campo de visão, eu me lembro de que posso te olhar.

Note bem, meu querido, não se trata de um olhar de desejo. Porque eu não quero mais que te olhar...

Eu sou dessas que quando olha uma escultura, ou um quadro, ou um objeto que minha alma inculta e não especializada entende como arte, posso perder (na verdade ganhar) horas admirando. Sem necessariamente meter a mão pra conferir se é real. Porque eu simplesmente sei que é.

Você é a obra de arte que “passa”.

Que se oferece aos meus olhos sem que eu precise buscá-la. Você passa...

E como bônus, exala perfume. Que hora é de banho recém tomado. Espuma de barbear. Ora é odor de quem trabalhou um dia inteiro...

Eventualmente esses cheiros seus se misturam com o das frutas que carrega.

Aí eu quase morro...

Mentira!

Eu renasço. Relaxo. Eu me refaço.

Você passa...

E como bônus, sorri.