Ao Meu Melhor Amigo
Meu grande amigo, com nome de Beatle,
Meu melhor amigo, a quem aqui não posso nomear, mas se algum dia você ler isso você saberá que é de você que estou falando.
Isso é uma carta de despedida. Não apenas nesta vida, mas em todas as outras por vir.
Apesar de nos conhecermos a tanto tempo eu nunca te dei tanto valor como nos últimos anos. Nunca te conheci como nos últimos anos. Nunca me identifiquei tanto com alguém como nos últimos anos. O que me atraiu em você foi justamente a minha decadência. Quando eu não conseguia mais fugir do álcool, quando eu dependia do cigarro, quando tudo que me animava era a morte e o esquecimento me apeguei a você, justamente por você também enxergar a vida assim.
Não sei o que houve exatamente. De repente você resolveu mudar de vida, resolveu melhorar. Encontrou um amor, encontrou um propósito, encontrou uma resposta no divino. Justamente você! Você que era o primeiro a dizer que era ateu no bar!
Você se encontrou consigo mesmo, se encontrou com o mundo, se encontrou com a vida. Por estes motivos eu tenho raiva de ti. Por estes motivos tenho desprezo de ti. E por estes mesmos motivos te invejo mais do que qualquer um no mundo.
Quantas e quantas vezes você não me convidou a conhecer seu novo estilo de vida? Quantas e quantas vezes você não me contou sobre as alegrias na sua espiritualidade?
Como você sabe muito bem, nunca fui ateu. Também nunca fui religioso. Sempre fiquei em cima do muro em questão de espiritualidade. Nunca acreditei nem desacreditei do divino. Mas lhe confesso que nos últimos meses me sinto menos ateu e mais religioso. Não. Religioso não é a palavra correta. Acho que "supersticioso" ou "espiritualizado" seria um termo mais adequado.
E é justamente por isso que estou escrevendo isso. E também por outro motivo muito importante: não tenho coragem de lhe falar diretamente. Não tenho coragem de te dizer pessoalmente ou de te dizer por e-mail, messenger, Whatsapp, porque sinceramente tenho medo da sua resposta. Não quero ouvir sua resposta. Você foi uma das poucas pessoas que realmente se importou comigo e justamente por isso não quero ouvir o que você tem para falar.
Sim, comecei a acreditar cada vez mais no espiritual, no sobrenatural, ou simplesmente naquilo que ainda não entendemos. E isso nem é tanto supersticioso quanto parece! Um dos princípios fundamentais das ciências diz que "tudo vai para um lugar". Em nosso universo nenhuma energia se cria ou se perde, apenas se transforma. Por que seria diferente então com a energia de nossos pensamentos, memórias, tristezas e alegrias? E além disso, passei a acreditar também em energias negativas e positivas. Novamente meu pensamento tem embasamento científico. Você me conhece muito bem. Sabe que nunca afirmaria algo sem sequer ouvir três ou quatro pontos de vistas diferentes sobre o mesmo assunto. Mas existem muitos estudos atuais sobre uma suposta forma de "energia negativa" ou "energia escura", em contraponto à nossa conhecida energia da interação entre átomos e elétrons. E, pasme, supõe-se que essa energia componha mais de 70% do nosso universo.
Mas voltando novamente ao terreno religioso, passei a acreditar em forças positivas e negativas, principalmente depois que vi como você se transformou depois que admitiu seus problemas e procurou a iluminação. Você é a maior prova que eu tenho de que existe sim algo muito forte que ainda não compreendemos.
No começo senti desprezo por suas escolhas. Depois de um tempo senti preconceito. Este preconceito virou curiosidade e hoje sinto admiração e inveja. Admiração (e orgulho) pois muito me alegra saber que um fodido como eu conseguiu um lugar ao sol (e que passou a admirar o sol, seu morcegão do caraio!). Inveja...
Durante muitos e muitos meses você me convidou a tomar uma atitude tão corajosa como a sua. Tentou me convencer que mesmo um fodido como eu ainda tinha algum propósito no mundo, que ainda poderia existir algum jeito de melhorar as coisas e ficar mais leve.
Eu simplesmente não tive coragem. Ficar frente à frente com meus principais defeitos? Meus principais problemas? Não existe nada mais assustador do que isso. Novamente parabenizo sua coragem e sua atitude. Mas não é exatamente sobre isso que vim escrever esta carta.
Como eu repeti várias vezes neste texto, sim, me tornei cada vez mais e mais supersticioso. E sempre me perguntei as mesmas coisas. Qual meu propósito? Por que eu sou assim? Por que nunca consigo me sentir feliz?
Várias vezes você me convidou a ter as mesmas experiências que você teve e eu sempre recusei. Em parte pelo medo da experiência nova, em parte pelo medo de me ver no espelho do abismo.
Tive vontade de te dizer isso. Quando chorei tive vontade de ligar e ouvir sua voz. Tive vontade de te mandar mensagem. Mas no meio do caminho deletei todo o texto.
Você sempre soube que nessa questão religiosa fui dividido. Metade de mim sempre quis fazer o bem, sempre quis ser o melhor para os outros. Mas outra parte de mim sempre teve essa afinidade com aquilo que não devemos jamais cultuar. Sempre, SEMPRE, senti atração pelas coisas ruins, pelo sofrimento, pela dor, pela culpa, pelo ódio, pela auto-punição, pelo desprezo. Sempre imaginei um mundo em chamas, em doenças e sofrimento porque sempre acreditei que o ser-humano é uma praga, um vírus, um câncer na criação da natureza.
Acho que finalmente tomei minha decisão. E, infelizmente, essa decisão nos coloca em caminhos opostos.
Hoje tive uma experiência muito, muito forte. Hoje pude sentir algo diferente, uma espécie de chamado, e finalmente aprendi o propósito de minha existência. Não quero entrar em detalhes, mas hoje eu quase matei duas pessoas. Senti todo aquele ódio guardado em mim explodindo como um vulcão. Por breves momentos senti não estar completamente sobre controle de minhas ações. O único motivo de não ter continuado foi justamente a dó e o remorso que senti por uma delas. Veja bem: queria apenas matar uma delas, mas entendi que se a matasse também teria matado a segunda. Freei. Parei. Engoli todo meu ódio, minha raiva e minha violência em respeito a este alguém a quem não desejo mal. E isso doeu como eu jamais imaginei!
Enquanto a pessoa de quem eu não sentia raiva alguma se entrepunha entre mim e meu alvo eu pude olhar bem fixo nos olhos deste meu nêmesis. Naquela falta de brilho de seus olhos eu entendi que o propósito de minha vida estava em matar aquele desgraçado. Ou não! Meu desejo era de deixá-lo vivo, mas destruir sua vida, torná-la miserável até seu último suspiro. Senti vontade de quebrar sua clavícula. Senti vontade de esmigalhar as rótulas de seus joelhos e deixá-lo tetraplégico pelo resto da vida, dependente de todos para absolutamente tudo, inclusive cagar. Senti que mesmo que o preço que eu tivesse que pagar fosse uma vida na cadeia, vítima de estupros coletivos e desmembramentos, ou até uma eternidade no purgatório sofrendo coisas muito piores seria um preço pequeno a se pagar por presenciar a um minuto que seja de desespero daquele filho da puta!
Segurei-me. Contive-me. Mas nunca senti meu próprio ódio, minha própria frustração tão pesada e tão feroz me consumindo por dentro.
Hoje eu senti um chamado. Um propósito. E, como já mencionei, isto nos coloca em caminhos opostos. Senti o chamado de tudo aquilo que você condena. Senti o chamado de tudo aquilo que ninguém não deveria se envolver nunca. Senti o toque do sobrenatural, mas não das mesmas entidades que você. O toque que eu senti foi pesado. Senti-me ainda mais amargurado. Ainda mais triste. Entrei em pânico e chorei. Chorei como uma criança desamparada. E no frio da noite pude sentir como que um corpo me envolvendo. Senti as mãos. Senti os braços. Senti o torso. Senti seus cabelos me envolvendo. E a sensação era tão ruim, mas tão ruim que pulei da cadeira e busquei a segurança da luz e do meu quarto. Isso num primeiro momento. Infelizmente, por pior que fosse, senti falta daquele toque. Senti falta daquela tristeza, daquele pesar.
Desculpe-me por ser fraco. Desculpe-me por trair sua confiança e tudo mais que você acreditou existir de bom em mim. Resolvi seguir o caminho mais difícil, o caminho mais cruel, mesmo sabendo que o mal que irei causar será depositado milhares de vezes mais sobre minha cabeça. Que toda a dor que eu infligir me será infligida eternamente uma centena de vezes pior. Mas ainda assim este é o caminho que deverei seguir. É o único caminho que consigo seguir por ser fraco, preguiçoso, covarde e orgulhoso.
Fica na paz. Você a merece.
Deus te videt
Deus te sentit
Morti vident
Morti sentiunt
São Paulo, três de março de dois mil e dezoito.