Ao meu companheiro de viagem
Não sei de onde venho nem para onde vou, sei que a este nosso mundo não vim sozinho, tive um companheiro de viagem muito especial. Não o escolhi para isso nem creio que ele tenha, da mesma forma, me escolhido. Digamos que apenas aconteceu, por capricho da natureza ou por um desígnio divino. Estivemos juntos desde os primeiros momentos de vida, navegamos juntos em um líquido especial, no ventre de uma mulher, que ficou muito feliz e ao mesmo tempo assustada com tal responsabilidade. Seu esposo estava bem mais satisfeito do que ela e torcia para que aquela gravidez lhe brindasse com um filho , - dois já seria uma dádiva bem maior - pois eles já tinham tido filhas e um filho que não chegamos a conhecer, só sabemos o seu nome, Hermano, uma vez que ele partiu ainda recém-nascido, e aquele pai ficou bastante triste com o acontecimento e desejava muito outro filho. Naquela época não existia recurso técnico para saber o sexo do filho ainda no ventre materno. Muito menos para saber se era um só ou mais de um, com a devida certeza. Havia apenas uma indagação dos profissionais, poderiam ser mais de um ou não.
Era uma surpresa e tanto, cinquenta por cento de chance de ser menino ou menina, mas tal qual um presente divino só deveriam saber na hora em que o nascimento ocorresse. Era, assim, a abertura daquele presente.
Devo voltar ao meu companheiro. Desde os primeiros dias havia uma comunicação entre nós, por meio de sinais, toques e sons, que somente a nós era possível entender, tal qual um código secreto. Nascemos, então, foi uma alegria geral para a família e muito especialmente para o nosso pai. E muito trabalho para a mãe e para as irmãs mais velhas, sei bem que era um trabalho realizado com amor e que por isso não causava nenhum cansaço. Trabalho maior talvez fosse saber quem era quem. Fomos devidamente alimentados, nos primeiros meses, pelos seios de nossa mãe, um por um, ou os dois ao mesmo tempo, lado a lado, penso eu. Minhas irmãs devem saber. O que sei é que eu nasci primeiro e o meu companheiro após cerca de uma hora. Estaria ele receoso de por os pés aqui, neste mundo? Isto não tem a mínima importância, agora, pois veremos mais tarde que tal ordem foi invertida.
Vivemos uma infância, adolescência e idade adulta ótimas. Sempre estudamos juntos, no mesmo colégio, na mesma classe, e sempre fomos objetos de admiração quase mística pelos outros, pela nossa semelhança física: um era a cara do outro, a mesma voz, e para embaraçar ainda mais vestíamos roupas, meias e sapatos idênticos, mesmo corte de cabelo, tudo igual para satisfação não exclusiva nossa, mas de nosso pai, orgulho em dobro. Eu não me importava em vestir roupas iguais, já meu companheiro não gostava muito.
Seguimos nossa vida sempre juntos, os mesmos caminhos, os mesmos obstáculos a serem ultrapassados, as mesmas trilhas, trilhos, descidas, subidas, desfrutamos das mesmas alegrias e tristezas. Um sendo apoio do outro, hora eu me comportava mais forte, já em outro momento ele era o mais forte, e assim seguíamos. De descoberta em descoberta, ávidos por conhecimento, ávidos por realizar nossos sonhos, os meus sonhos e os dele.
Na idade adulta uma parte foi vivida em comum, já em outra parte o inevitável aconteceu. Tivemos que seguir vidas separadas, fisicamente. Em espírito acredito que estamos juntos ainda hoje.
Era como estar em um único meio de transporte, subimos juntos e desceríamos juntos, em uma parada qualquer ou no fim da linha daquele veículo, era assim que eu, quem sabe egoisticamente, pensava. Mas não tínhamos tal pacto firmado, talvez apenas transmitido naquele código secreto, que apenas eu e ele conseguíamos entender, decodificar.
No entanto fui surpreendido com uma decisão do meu companheiro. Ele desceu antes de mim, sem nada avisar, sem um forte abraço, sem um beijo em sua testa, sem direito a uma despedida por mais breve que fosse, sem um olhar, sem um aperto de mão, sem um carinho e sem o meu desejo de que ele fosse em paz, sem dizer um "Até breve" ou um "Até logo" ou um "Até mais tarde".
Foi muito dolorosa essa partida do meu companheiro. Mas eu o respeito, foi uma escolha dele, não minha. Sim, respeito mas não entendo. Aos poucos eu vou abrindo meu coração e minha alma e procuro entender e compreender, enfim aceitar que tinha que ser assim. Sei, é difícil, doloroso, contudo eu tenho que aceitar que tinha que ser dessa forma. Talvez nem ele mesmo tenha entendido. Talvez nem ele mesmo tenha escolhido isso. Quem sabe alguém, mais sábio, ou não, escolheu por ele. Já devia estar escrito que seria assim e não de outra forma.
Não devo me lamentar, pois foi apesar de tudo uma viagem maravilhosa. Tem sido uma viagem fantástica. E sei que ainda vou encontrá-lo um dia, não sei daqui a quanto tempo, isto não importa. Importa que eu o encontre no aconchego dos braços de minha mãe, de meu pai, de meus irmãos e irmãs que já lá se encontram. E sei que serei guiado pelos mesmos caminhos que ele seguiu, pisarei nas suas pegadas, e o guia irá à frente de mim, talvez de nós, falando em alto e bom som, com perfeita dicção, sigam-me os meus, os meus, os teus, os nossos... E sei que não haverá mais despedidas, somente encontros, encontros esperados e inesperados, com pessoas que passaram pelas nossas vidas e das quais nem nos lembramos mais, com pessoas das quais nunca esquecemos, que nos deixaram fortes e boas lembranças, amigas e amigos de infância, colegas de colégio, de faculdade, do trabalho, nossos mestres, primeiros amores, últimos amores, todos os amores. Todos os familiares. Todas e todos, companheiras e companheiros. E eu novamente segurarei forte em sua mão e não o deixarei escapar nunca mais, pois iniciaremos uma nova, uma outra viagem, uma viagem diferente, pois desta vez eu sei que eu o escolhi como companheiro de viagem e sei que ele também me escolheu. Naquele lugar não haverá mais espaço para despedidas, para tristezas, somente para alegria, contentamento e celebração. Celebração da vida, celebração do amor, celebração da amizade, celebração da família. Nesta viagem nada mais há para se amedrontar, não haverá nenhum fim de linha ou ponto de descida.
Até breve meu companheiro de viagem, meu irmão, meu amigo. Até logo meu irmão querido. Até mais tarde meu irmão Antonio Jorge.
De seu irmão e companheiro eterno de viagem, Francisco de Assis