CARTA AO FILHO
     
     Querido e lindo filho!

     Gostaria muito que estas minhas palavras a você fossem de cânticos, daqueles que fazem as crianças sorrindo e deixando-as vagarosamente ser dominadas pelo soninho que vai colocando peso nos olhos; principalmente de cantos cantados por sua mãe com a voz bela dela que sempre admirei e que sei você também, mesmo não nascido, aí neste especial útero, tem ouvido e através dos seus “chutar” confessava o quanto estava gostando!

     Não posso.... E é por isso que as palavras iniciais são de pedidos de desculpas por tudo que a partir de agora vou falar. Eu e sua mãe tivemos hoje um desassossegado desentendimento. É certo que você não está compreendendo, mas é assim com os adultos. Temos, todos nós desta raça humana, códigos de comunicação inventados por nós mesmos que, às vezes, quando mal utilizados, por mais que se desejasse que o alvo fosse provocar um bem, inverte o valor e transmuda-se em um instrumento de maldade e fere, chegando às vezes à desumanidade (humano não humano, se é que você, filho, me entende). Pois é, aconteceu isto hoje conosco. Usei de forma inadequada os códigos. Desejei que as palavras que usava chegassem a ela como uma flor viçosa e orvalhada e que ao tocá-la fosse como uma chave que abrisse seus lábios, deixasse a vida enxergar seus brilhantes dentes num sorriso daqueles desenhados por criaturas angelicais; sim, daqueles que sempre fez quando olhava para você naqueles momentos em que fechava os olhos do corpo e abria os da alma com os quais via você aí dentro. O mais lindo de todos os sorrisos (isto você sempre viu, filho!).

     Mas não foi assim. Quando ela ouviu minhas palavras, viu meu gesto e meu sorriso tudo isto decodificou como eu indo em direção dela com o punhal da traição. E disse coisas que decodifique como se minhas mãos pesadas cravassem esse impiedoso instrumento em sua alma. E aquele sorriso esperado daquela boca por mim tão desejada, que beijara com o mais doce dos sentimentos românticos, não se fez. Seus lábios estavam cerrados, seus belos dentes não se viam, dos seus olhos lágrimas tristes vertiam e da sua boca saiam as mais amargas das palavras (sim, filho, palavras têm sabores: doces quando amáveis e às vezes amargas, quando zangadas. Também têm temperatura, às vezes quente ou fria. Se têm peso? Sim, também: momentos há que saem leve como uma pluma e há momentos de peso como o trovão... códigos humanos, sabe filho?).

     A razão do desassossego, filho? Conto sim. A compreensão errada dos meus códigos a desviou da minha intencionada atitude, que seria para o bem, e provocou muita tristeza em sua mãe. Em mim, tanto quanto ou muito mais. Verá como foi surpresa para mim a reação dela quando percebi que a surpresa que preparei para ela ocasionou o efeito contrário. (Ah! Eu explico. É quando algo nos chega sem aviso, sem anúncio prévio. Isto é surpresa). E estou aprendendo que é muito arriscado fazer surpresa a mulheres. Precisa ser elaborada com exame de muitos detalhes, ser muito minucioso no preparo. E nisto eu peco quando tento surpreender sua mãe ao pretender maravilhar a alma dela. Peco por falta de zelo. Chego no momento errado e dou com os burros n’água. Errei outras vezes, mas desta vez foi a pior das codificações que produzi. Você já está entendendo que o erro está comigo, não? Pois é, culpa zero para sua linda mãe. E pode tirar esse sorrisinho maroto ao me julgar, você ainda entende nada disto!

     Foi assim: tinha uma programação para as festividades do nascimento do seu irmãozinho, o Palavra é Arte. Iríamos apresenta-lo à sociedade, mas notei na agenda que sua mãe estaria viajando e não poderia estar presente. E foi aí que elaborei a desastrada surpresa a ela. Preparei um anúncio com antecedência e enviei para ela pelo meio mais rápido que pude, na esperança de que no exato dia e momento das festividades receberia o anúncio e nossas almas se juntariam, mesmo distantes, em alegrias. E a cada brinde com os convidados eu olharia para a câmara e sorriria, sorrindo para ela e recebendo (imaginara) o sorriso lindo dela em aprovação daquele tão belo momento. Qual nada! As festividades aconteceram, ela não recebeu o anúncio na hora que eu esperava. Soube do acontecido antes de receber o anúncio e, brava, sentindo-se traída por mim não mediu palavras, liberou as amargas, as frias e a elas se juntaram as de trovão. Banhou-me com suas tristes lágrimas. Sentia-se muito ferida e dizia que o amor em mim não existia e que estava sofrendo. E o desastre maior se deu: tudo entre nós, todo o amor cultivado se rompia (ó, filho! nestes momentos qualquer palavra expressada em defesa é ouvida como denúncia de culpa. É o momento adequado para convocar-se o silêncio. Emoção forte não se concilia com a razão. Silêncio. Sim, o silêncio é o melhor conselheiro, acredite). Mas nem o silêncio no nosso caso permitiu baixar a temperatura sentimental nem esvair a raiva.
     Filho, já conversamos sobre a metáfora do cristal quebrado, está lembrado? Pois é, nossos frágeis e apaixonados corações eram de cristal. O dela ela sentiu quebrado neste instante. E quando ela, com a sua confessada imensa tristeza, a mim falou dessa irreparável confiança traída, o meu em pedaços também se fez.

     Claro que reafirmo as palavras iniciais de que você mereceria desculpas pelo que anunciaria! E (estou certo disto) você será o maior prejudicado, filho. Sua mãe me engravidou de você, implantou em mim todas as ternuras dela, envolveu-me de toda emoção e carinho que ela tem e sabe dar. Quando plantou em mim a semente do amor, permitiu-me transformar minha alma em um amoroso e fértil útero para gerar você. A cada dia, de palavrinha em palavrinha, de versinhos em versinhos, de poesia em poesia suas folhas iam surgindo e seu corpinho ia tomando forma. Eu vinha alimentando você e vendo dentro da minha alma crescendo. De sua mãe recebia, constantemente, o alimento da paixão com a qual eu processava a sua alimentação. E o olho agora no sexto mês, quase pronto para nascer. Quanta alegria você vem me dando! Alegria que transferia para alimentar o coração da sua mãe, para ela produzir mais paixões em mim como matéria prima do seu alimento, filho. Mas o meu coração está sangrando, o esvair do sangue está impedindo o alimento chegar a minha alma gestante. Nenhuma palavra mais... nenhuma letra mais... não tenho como alimentar você!

     Filho, você pode não nascer! Não posso mais trazer você a este mundo. Não sem a sua mãe. E ela se foi... e parece que não mais voltará. É algo que acontece neste mundo dos humanos. Uma maluquice? Sim, é mesmo assim.

     Filho, perdoa-me... seu alimento se esvai...

     Beijos do seu Pai.
Ismeraldo Pereira
Enviado por Ismeraldo Pereira em 13/06/2017
Reeditado em 13/06/2017
Código do texto: T6026267
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