Epístola
São Paulo, 19 de novembro de 2017.
Caro leitor,
Eu venho escrever esta carta para explicar um pouco sobre a minha vida e os problemas que vivemos e me levaram ao suicídio. Sei que serei culpada mesmo postumamente, o que não significa que eu espere que esta carta me exime de qualquer culpa, porém, se for para apontar o dedo para mim, que seja de acordo com o que eu realmente cometi, e não sobre o que esperavam que eu tivesse feito. Sim, há coisas que eu fiz, e que me culparão, e dirão que eu não deveria ter feito, porém, haveria outro rumo se eu tivesse tido direitos sobre meu corpo e alma. Estou condenada a sofrer todas as penas que não posso listar por falta de conhecimento do pós morte, mas não acredito que haja paz em qualquer lugar onde a consciência perdure.
Eu me casei com meu marido muito jovem, tanto eu quanto ele. Eu não queria ter filhos, porém, aconteceu. Tenhamos uma vida ótima e tentávamos fazer tudo o que podíamos para viver as alegrias da vida. Foi quando engravidei do meu primeiro filho, Augusto. Eu tive depressão durante toda a gravidez, senti-me privada e invadida, senti-lo mexer e crescer em mim era estranho, aterrador. Ele nasceu e eu tive depressão pós-parto. Ele começou a crescer e percebemos que ele tinha dificuldades, Augusto foi diagnosticado como autista. Eu me sentia muito culpada, o tempo todo. Deixei de trabalhar fora para cuidar dele, fomos pais muito presentes e procuramos fazer o nosso melhor. Ele era um garoto doce e dócil. Quando Augusto tinha três anos eu engravidei novamente, foi uma gravidez planejada. Foi bastante diferente da primeira. Não digo que seja mais fácil, porém, não digo que eu tenha sentido em qualquer momento aquele amor que vejo tantas pessoas dizendo por aí. Eu engravidei de gêmeos, nasceram Valéria e Victória.
As meninas cresceram bem e não demonstraram nenhum tipo de problemas para acharmos que haviam se tornado autistas. Isso foi um alívio. Augusto era uma boa criança e quando cresceu mais era cuidado por mim e as meninas, que apesar de ajudaram, tinham muito ciúmes de nós dois juntos. Diziam que eu o preferia a elas. Hoje vejo que elas brincavam com ele e cuidavam dele para me afastar dele o máximo possível. Infelizmente, devido à restrição comunicativa de Augusto, coisas estranhas começaram a acontecer quando ele tinha cinco anos. As meninas apareciam mordidas, machucadas, uma vez Victória chegou a ter um pedaço da perna arrancada em uma mordida em sua coxa. Aquilo me assustou muito e levamos Augusto para ser tratado.
Passamos a deixá-los separados, e os casos diminuíram. O que passou a acontecer foi que Augusto começou a aparecer arranhado, foi diagnosticado com comportamento de automutilação. Nunca vimos ele fazendo nada, o que é mais estranho ainda. Quando as meninas estavam maiores começaram a me ajudar a cuidar dele, da maneira que crianças fazem, e ele parou de aparecer mutilado tantas vezes. Acreditava que elas estivessem lhe fazendo bem. Acreditava nas coisas como uma mãe pode acreditar, mas como não era uma mãe daquelas que amam incondicionalmente, sempre tive um pé atrás sobre tudo, que eu engolia para não passar como louca. Eu achava muito estranha a forma que elas me mantinham longe de Augusto, mas eu me sentia muito aliviada. Até mesmo durante as crises dele, elas me ajudavam.
Nessa época Augusto começou a ter acessos de agressividade, ele já tinha uns oito anos, ele matava animais, de forma muito cruel, despedaçava-os... muitas vezes encontrávamos pedaços como a cabeça de peixes dourados e pássaros nas camas, sob os travesseiros. Cada vez era mais difícil comunicar-se com Augusto, ele ficava mais calado, mais introvertido. Eu achava que ter as meninas me ajudando me privava de enlouquecer. Mas essa não era a verdade. Eu não queria ver a verdade.
Igor era um pai presente, e muitas vezes ele ficava com as crianças quando eu precisava de um tempo. Ele também recebia um tempo muitas vezes, tentávamos nos ajudar, e quando podíamos deixávamos as crianças com parentes. Uma das vezes que ele ficou com as garotas foi quando Augusto estava perto de completar dez anos. Lembro-me disso, pois logo ele completou dez.
Fatídico dia, quando estava fora recebi o telefonema no hotel, estava na praia, sozinha com umas amigas, e tive que retornar correndo, pois haviam entrado na minha casa e matado Igor a facadas, deixando as crianças na casa, as meninas presas e Augusto solto. Igor foi esfaqueador diversas vezes enquanto dormia. Estava amarrado. Não quis ver as fotografias. Fiquei chocada, nada foi roubado, foi apenas um ato criminoso de assassinato. Foi terrível, assustador, eu entrei em choque, as crianças ficaram com meus pais e os pais deles, em revezamento, eu fui internada, fiquei dois meses catatônica.
Quando retornei ao lar, as crianças pareciam normais, as meninas já tinham sete anos, planejamos o aniversário de augusto, fizemos uma festa para a família, mas nada escondia o horror na minha face, estava magra, esquelética, pálida, moribunda... o sorriso era assustador, como uma caveira que preambulava pela sala, sinalizando a morte para todos. Eu não comia, não dormia, não vivia, mal levantava da cama, as meninas pareciam entender e lidavam com isso de uma forma produtiva, quando outros adultos não estavam nos auxiliando, elas estavam sempre cuidando de Augusto e de mim.
Elas sabiam os horários dos meus remédios, mais do que eu. E como eu estava lidando com depressão pós-traumática, acabava muito dopada. Não lembrava de muitas coisas do que se passavam durante os dias e as noites eu não lembrava de nada. Parecia que eu estava passando pela vida sem viver. Eu não queria mais viver.
Sei dizer o dia, pois há registros sobre isso em todo lugar, faz exatamente dois meses que aconteceu, o dia em que minha mãe chegou e encontrou o pesadelo mais assustador da minha vida. Augusto estava em seu quarto, morto. Ele estava morto e seu sangue estava por todos os lados. As meninas estavam desaparecidas. Eu era a única pessoa ali. Segundo os laudos do legista, Augusto foi abusado com objetos diversos, que estavam no quarto, de forma sádica, ainda vivo. Ninguém o ouviu pois ele estava dopado como eu, com meus remédios. Cotaram-lhe o pênis e o saco escrotal, mutilaram seu pescoço, quebraram sua cabeça, havia diversas fraturas em seu crânio, o que foi a causa da morte.
Não há provas, assim como no caso de Igor, de outra pessoa na casa. As meninas foram encontradas dias depois, vagando pela estrada. Elas relataram que foram levadas por homens, elas tinham sinais de abuso. Estão sendo tratadas, assim como eu. Porém, não posso tirar de mim o meu conhecimento pessoal sobre o caso: Elas cometeram os crimes. Elas matavam os animais, elas se mordiam, elas mutilavam Augusto, elas premeditaram tudo.
A conclusão do caso é que estão em busca dos homens que foram delatados por elas, mas em meu coração eu sei que foram elas. Eu não aceito em minha mente, pois para mim tudo não faz sentido, mas eu sei que foram elas. Não aceito e não posso viver com isso. Eu deixo o mundo e essa minha certeza para que o alerta se faça, não acredito que me ouvirão, nem que esta carta passará de uma louca maníaco depressiva se expressando. Eu posso não ter amado incondicionalmente os meus filhos, mas os amei. Ainda amo muito, mas não posso mais viver assim.
Despeço-me.
ESSE TEXTO COMPÕE A "OBRA PERTURBADORA II"