A alguém de outro sítio bem distante deste
Tudo poderia ter sido diferente e infinitamente mais leve, ainda que dentro de todas as interdições e interditos da vida. Poderíamos, por exemplo, ter vindo a conviver como dois grandes amigos, sem as sombras, as artimanhas e os subterfúgios tantos, inventados por ti... ou poderíamos ter partido de vez e completamente um do outro, há muitíssimo tempo. Faltaram sempre, de ambas as partes, as atitudes claras, certas... Sobraram outras tantas, que não deveriam ter sido nunca.
Exauri-me por completo no infinito jogo do ser-não-ser que me foi imposto, sem defesa possível pelas humanas leis, por existir sem deixar rastros. Ah, terrível jogo invisível! Exauriu-me o ser. Exauriu-me a linguagem e o silêncio. Exauriu-me a poesia. Se algum mal te causei no passado longínquo, por certa escolha que fiz (não poderia ter feito outra) paguei e tenho pago por aquele 'mal' mil e mil vezes. Tu sabes, sabes bem. Por isso não tenho qualquer perdão a pedir.
Nem sequer queres um exemplar do "Hidra..." meu livro recém-publicado, por uma gráfica; meu livro sem lançamento, sem prefaciador, com muito restrita divulgação... Claro, esse livro fala essencialmente de nós, quase nada do que foi um dia 'paraíso' e muito das alucinações e dos desvarios, e de ruas sempre sem-saída; ele, livro, diz dos espelhos nos quais confundimos nossos rostos... nada diz do que houve de êxtases nisso. Ele, livro, diz também do outro, do que veio depois, daquele homem ímpar, de Coragem inaudita, com quem sempre fui leal (ainda que lhe ocultando os 'percalços' meus, causados por ti); o homem a quem sempre fui fiel. Ah! Teu orgulho não te pode permitir o confronto com esses relatos de 'acontecimentos' os quais, afinal, constituíram muito do nosso passado, da nossa 'história'.
Não é fácil lidar com o vazio, no meu caso com o vazio de 'quase' tudo, de 'quase' todos, de 'quase' todas as coisas que me compuseram e ao meu mundo, também por múltiplas causas que ultrapassam em muito o âmbito de nós dois, da nossa 'relação'. Não é fácil, mas, é o necessário, pelo menos por minha parte, a única coisa sensata a ser feita, além do imperativo essencial de querer e de tentar refazer o possível das condições de mobilidade do meu corpo físico, para que a vida prossiga, no ainda possível dela, a fim de que eu possa manter o cumprimento dos deveres que me cabem, com minha mãe, bem como o cumprimento dos deveres (que eu ainda consiga cumprir) comigo própria (mais autêntico, talvez, fosse eu ter escrito isso na outra ordem).
Sonhei por demasiados anos com, esperei por demasiados anos o brotar de duas flores-de-lótus em nossas respectivas almas e vidas... Sempre em vão... Sempre em vão... Não sei, não quero, não posso, não vou sonhar mais com o que quer que seja, no que se refira a nós. Não me cabe, mesmo, há muito, sonhar com nada mais... Tal consciência me foi aflorando aos poucos... aos poucos... aos poucos... até tornar-se, neste agora, nítida no limite absoluto da própria nitidez.
Sinto-me como uma criança que precisa nascer de mim mesma... A fórceps, é verdade, mas, que precisa nascer.
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Não há mais nada que eu possa nem deva dizer senão que:
Neste 09 de fevereiro de 2017 e sempre, consigas toda paz possível... toda alegria possível... Seja como for. Almejo-te isso de todo meu coração. Afinal, aqueles que me importam me importam para sempre: Tua vida e teu destino sempre me hão e me haverão de importar, como os destinos e as vidas de todos os mais.
Zuleika.
Nota.1 Claro, não és o único, talvez nem mesmo o principal responsável pelo meu sem-fim de batalhas perdidas. Não o és, certamente. Certamente, porém, (não há como negar), és aquele que veio exacerbar, no limite, minha sensação eterna de não-ser, isso para dizer o possível de dizer, já que esta é uma carta aberta.
Há vários outros seres corresponsáveis, sendo eu a maior responsável de todos eles juntos, em razão das minhas cumplicidades com cada um. Eu o sei, minha lucidez não permite a eleição de 'bodes expiatórios' para além de mim mesma, o que constitui (eu me eleger como o bode expiatório) um grave erro e mal dos quais tenho sido sempre a principal e única vítima.
Nota.2 Se alguém ler esta carta (fora o destinatário dela, que nem sei se a lerá), que a leia como peça de ficção, um pouco à Kafka. Afinal, a vida muitas vezes assim é, ou pode assim se tornar. Não para a maioria das pessoas, felizmente.
Nota final. Se teu afeto por mim subsiste, realmente, para além de todos os tempos e gestos de 'loucura', então aprenda o aprendizado difícil de gostar e de prezar quem me quer bem, quem pode estar, ser solidário e presença real no real dos dias, na vida tão difícil e solitária que é a minha vida.