DEUS: SEM PRINiCPIO NEM FIM - Carta 214

Carta 214

DEUS SEM PRINCÍPIO NEM FIM

Antônio Mesquita Galvão

Um leitor ex-padre (Estudou Teologia na Gregoriana de Roma)

me enviou uma questão instigante: “Tudo tem início. E Deus?

Nossa teologia diz que ele é eterno. Sim, mas sem princípio?

Como? Tenho dificuldade em explicar esse aspecto. Você pode

me ajudar? Um Abraço”.

Caro amigo,

Nas Escrituras, antes da Tradição vamos encontrar alguns textos objetivos e algumas pistas subjetivas que apontam para e incriabilidade de Deus. No primeiro versículo do Livro do Gênesis vamos encontrar no texto hebraico original “berechit barah elohem het ashmain we haaretz” (No princípio Deus cria [criou] os céus e a terra). Ora, para organizar nosso raciocínio teríamos que começar a refletir a partir do verbete que abre a Bíblia e titula o primeiro livro: berešit, no princípio, no começo, no encabeçamento. Tudo porque berešit tem sua raiz em rösh (cabeça) e encabeçar, segundo o autor sagrado traz consigo uma idéia de organizar, de dar forma.

Então vemos que no principio Deus cria (os verbos referentes à acão divino-criadora são sempre conjugados no presente). Vamos refletir sobre duas palavras. Cria o quê? A criação envolve todas as coisas, seres e natureza. Essa criação organiza tudo, pois havia o caos, a terra estava disforme (tohu) e vazia (wabohu). A bagunça era generalizada. A partir daí Deus cria tudo. Depois do caos inicial Deus decide por uma “nova criação” (dos seres visíveis) já que a primeira (dos seres invisíveis) por causa da revolta e queda dos anjos não dera integralmente certo.

Sua estruturação é consciente. Chega a ser rigorosa. Vai a minúcias. Há uma frase introdutória e outra conclusiva. Servem de delimitação. Na cabeça está o título: “No principio criou Deus os céus e a terra” (v. 1). No final há um fecho: “Esta é a genealogia dos céus e da terra, quando foram criados” (v. 2,4a). Também há um subtítulo. Encontro-o em 2,1: “Assim foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército”. Este título intermediário atribui um destaque todo especial à parte final: 2,2-4a .

Nesta nova etapa da Criação, Deus organiza e faz surgir as coisas a partir de sua palavra, vista como uma expressão de liberdade e vontade . Como obra da דֶּבֶר, davar, Palavra de Deus, a Criação não se refere a uma necessidade da divindade, mas retrata a absoluta liberdade de sua vontade e de sua decisão. Nesse contexto de gratuidade, o homem descobre Deus como criador de tudo, a partir de seus vestígios no universo. O hagiógrafo usa para esse trecho o estilo abstrato das poesias oriundas da cultura palestinense. Deus cria tudo a partir do nada (ex nihilo). Essa criação divina aponta para o berešit um começo a partir do que não havia nada. Só Deus existia. Esse princípio aponta para a origem de todas as coisas e criaturas. Deus é anterior a esse começo. Na linguagem rebuscada dos livros Sapienciais o Espírito Santo é chamado de “a sabedoria de Deus”, e essa sabedoria está ao lado dele desde o princípio.

Quando Javé não tinha feito a terra e a erva, nem os primeiros elementos do mundo, quando ele fixava o céu e traçava a abóbada sobre o oceano, eu aí estava e me achava presente quando ele condensava as nuvens no alto do céu e fixava as fontes do oceano. Quando punha um limite para o mar, de modo que as águas não ultrapassassem a praia e também quando assentava os fundamentos da terra eu estava junto com ele, como mestre-de-obras. Eu era o seu encanto todos os dias, e brincava o tempo todo em sua presença; brincava na superfície da terra e me deliciava com a humanidade (Pv 8,26-30).

O Deus-Trino está presente desde a criação do mundo, na produção dos profetas do judaísmo, no surgimento da Igreja e na expectativa da parusia.

Desde a Antiguidade o mistério da Santíssima Trindade é o ponto alto da fé e da vida cristã. O apóstolo Paulo manifesta a síntese da ação divina na alma humana que se dispõe a acolher o dom de Deus: a Graça que Cristo nos mereceu e oferece gratuitamente a todos, o amor do Pai rico em misericórdia e as luzes inspiradoras do Espírito Santo que gera a comunhão .

Na teologia-filosófica de Santo Tomás de Aquino há uma “teoria” em que é defendida a existência de uma causa primeira (causa incausada) para conseguir explicar a cadeia de causas que acontecem no mundo. O silogismo dessa teoria tomista pode ser assim apresentado:

• No mundo, todas as coisas têm uma causa eficiente:

• Nada pode ser a causa eficiente de si mesmo:

• Ora, não é possível que se proceda até o infinito nas causas

eficientes:

• Logo, existe uma causa primeira eficiente, que é Deus.

Causa eficiente tem por definição algo produzir outro algo – e no mundo conseguimos observar uma ordem de causas eficientes e seus efeitos como bem aponta a premissa. E se o último algo produzir um terceiro algo e assim o ciclo continuar sucessivamente, assim teremos uma ordem de causas eficientes. Se, por exemplo, a semente produz a laranja. A laranja é a causa eficiente da semente. Ora, a fruta não pode ser a causa eficiente de si mesmo, mas apenas efeito de uma causa eficiente – que no caso é a semente. Portanto, como observamos os efeitos, fazer um regresso ao infinito para chegar à causa eficiente primeira.

Por fim, se existem efeitos no mundo, é preciso que exista uma causa eficiente primeira, sendo ela Deus. Cada evento é causa um do outro. Nessa regressão chega-se a um ponto zero: qual a primeira causa? Deus que existe antes de tudo. Deus é Criador sem haver sido criado. Sua existência está ligada à imanência de quem é princípio de tudo sem ter princípio. Na abertura do famoso Prólogo de São João o autor do Quarto Evangelho começa falando em en arché (no princípio) para se reportar ao começo (berešit) da Criação:

No princípio era (havia) o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o

Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as

coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se

fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens (Jo 1,1-

4).

Deus existe desde sempre. É um erro afirmar que ele existe desde o princípio, o que poderia suscitar uma pergunta meio herética: e antes do princípio, onde ele estava? No princípio (cf. Gn 1,1; Jo 1,1) ele já se fazia presente, porque sempre existiu. Essa existência dispensa quaisquer comprovações ou explicações. O Antigo Testamento ignora as teogonias das antigas religiões que explicavam as origens dos deuses pagãos.

Desde “o princípio” Deus existe e sua existência se impõe como um fato inicial que não precisa de qualquer explicação. Deus não tem origem nem devir; Só Deus é “o primeiro e o último”, o mundo é todo inteiro obra sua .

Essa absoluta anterioridade de Deus está expressa nas tradições do Pentateuco de duas maneiras complementares. A tradição javista põe em cena Javé desde o início do mundo e, bem antes disto revelam que seu Espírito já pairava sobre o abismo (o caos). Já a tradição eloísta sublinha a novidade traduzida pela revelação do “nome divino” (EU SOU) a Moisés.

Outra menção ao Deus sem começo nem fim aparece na construção do livro do Apocalipse, sob o simbolismo alfa e do ômega. Alfa e Ômega são respectivamente, a primeira e última letra do alfabeto grego jônico clássico (α e ω, dito como «το 'Αλφα και το Ωμέγα»). A tradição cristã assimila frequentemente Jesus Cristo e Deus ao Alfa e Ômega. Este conjunto simboliza a eternidade de Deus ou Cristo, que :

• está no começo de tudo, referência no primeiro capítulo do

Evangelho segundo São João;

• tudo acompanha até ao fim do mundo (ver a este propósito o

Apocalipse do mesmo evangelista).

O jesuíta Pierre Teilhard de Chardin tomou esta metáfora na sua apresentação do ω (ômega) como final da evolução humana, associado ao α (alfa) da criação. A seguir, algumas citações a esse respeito:

Eis que venho em breve! E trago comigo o prêmio que tenho

para dar a cada um segundo as suas obras. Eu sou o Alfa e o

Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim (Ap 22,12s).

Quem fez e agiu desta maneira? Quem chamou as gerações

desde o princípio? Eu, Yahweh, que sou o primeiro e sou o

mesmo com os últimos. (Is 41,4).

Assim diz Yahweh, o Senhor, o rei de Israel, o seu Redentor, o

Eterno dos Exércitos: “Eu sou o primeiro e também sou o último;

além de mim não há Deus” (Is 41,6).

.

Dá-me ouvidos, ó Jacó, e tu, ó Israel, a quem chamei; Eu sou o

mesmo, sou o primeiro e também o último (Is 48,12).

Eu sou o Alfa e o Ômega, declara o Senhor Deus, Aquele que é,

que era e que há de vir, o Todo-Poderoso (Ap 1,8).

No Apocalipse, Deus é chamado de Alfa e Ômega, porque toda a revelação começa e termina com ele. Ele é o Criador e o concluidor de toda a vida. Cristo também tem este título porque Ele é a fonte da vida e é co-eterno com o Pai. Se temos a ansiedade sobre como o mundo vai acabar e como vai ser depois que esta vida terminar, podemos estar certos de que o mesmo Deus que começou este mundo (como o Alfa) vai estar lá no final (como o Ômega). O conhecimento de que Ele está no controle completo de cada aspecto de nossas vidas é uma fonte de segurança e de conforto nos momentos de provação.

Na teologia bíblica, o alfa e o ômega significam a transposição para Cristo de uma qualidade de Deus, princípio e fim de todas as coisas, como descrito, por exemplo, em Isaías: “Eu Yahweh, sou o primeiro, e com os últimos ainda estarei”. Deus é o princípio sem princípio, o motor imóvel de toda a criação, aquele que criou tudo sem ter sido criado. No Credo Niceno-constantinoplitano a Igreja ora que “Jesus (o Verbo) é gerado, não criado, consubstancial ao Pai...”.

Ora, igual ao Pai, Jesus é co-eterno sem princípio nem fim. Quando ocorreu a criação lá estava em glória e presença o Deus Trinitário, Pai, Filho e Espírito Santo. Jesus é não-criado, apenas gerado como homem, na encarnação no seio da Virgem Maria. Ora, se Jesus é não-criado, logo o Pai que é ligado consubstancialmente ao Filho é igualmente não-criado. Na verdade é um erro tentar descobrir a inexistência de princípio em Deus ligando-o ao fato de ele ser eterno/imortal. A alma humana também é imortal e eterna, mas embora não tenha fim, teve começo... No texto temático do evangelho de João, Jesus se apresenta como EU SOU, igual à apresentação do Pai a Moisés na teofania do Sinai.

Abraão, o pai de vocês, exultou por ver o meu dia; viu-o, e

alegrou-se.

Disseram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens cinqüenta anos,

e viste Abraão? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em

verdade e lhes digo que antes que Abraão existisse, eu sou.

(Jo 8,56ss).

Ora, se conhecemos a propriedade de co-eterno de Jesus igual ao Pai, sendo o Filho anterior a Abraão e situado no início da história, antes de tudo, não é difícil enxergar o Pai (Criador do céu e da terra) também situado nesse estágio atemporal.

De qualquer forma, a antecedência de Deus na Criação faz parte do depósito da nossa fé, que recebemos desde a nossa catequese primeva e que aceitamos sem maiores relutâncias. Assim, o termo princípio berešit traz consigo uma idéia de prioridade de um evento sobre outro. Se nos referimos à Criação e mencionamos a expressão no princípio, estamos querendo dizer que esse princípio é anterior ao evento criador. Antes de Deus criar tudo ele já existia, eterno, impassível e incriado. A prioridade de Deus sobre todas as coisas é de tempo e de dignidade. Na criação o Verbo já existia. Portanto, quando tudo o que existe foi chamado à vida, Deus, o Verbo e o Espírito já subsistiam por si mesmo desde a eternidade.

Espero ter respondido satisfatoriamente sua indagação.

Um abraço fraterno.

Trabalho concluído no dia 30 de novembro de 2016 - “Dia do Teólogo”.