A ‘carta’
Eu venho tendo a necessidade de escrever, mas a pressa, o passo largo e os compromissos engatilhados não deixam. Hoje, não por acaso, o tempo andou preguiçoso e aqui estou... escrevendo para compartilhar o quão foi impressionante e insólito receber ‘aquela carta’ com todo o seu impulso reflexivo, abraçando o mistério quando, sabe-se lá porquê, resolveu nos ligar, vincular a uma tal pessoa.
Isso sempre soou através de uma ruidosa emissão, pois estive fora de qualquer convivência típica. Não dividimos a mesma casa, não brincamos juntos, não repartimos segredos, nem arrumamos brigas na escola. Não viajamos, não comemos na mesma mesa, não passamos as tardes na casa da avó, nem tomamos banho na chuva. Nunca atravessamos juntos uma data festiva e comemorativa e nem disputamos o último pedaço da pizza. Em suma, não foram os ‘laços atados’ nessas pequenas coisas que são capazes de estruturar bases insignes para uma vida inteira e, quiçá, para as outras vidas também.
Evidentemente, que na mesma medida foi estranho ‘ter’ e ‘não ter’, no entanto, isso não vem ao caso. Só sei que sempre achei penoso qualquer tipo de aproximação; parecia que estávamos tentando consertar o que, definitivamente, não tinha conserto e que ter o ‘passado cruzado’ não passava de um acidente, uma mera ironia do cosmo tentando nos pregar uma peça. E que peça? Mas, agora não importar saber se por brincadeira ou por pura maldade.
A ‘carta’ falava de arrependimentos, perdão e rasgava assuntos sensíveis e, portanto, doridos. Fazendo emergir o que eu pretendia deixar encarcerado, postergado, omitido pelo tempo, sepultado em qualquer fosso repugnante e distante dos meus olhos, visto que é mais fácil fingir do que enfrentar.
Contudo, a ‘carta’ tinha uma urgência em comunicar algo que, mesmo no pretérito mais-que- imperfeito, reverberava em meu presente do indicativo, fazendo-me tomar outras rotas, desenvolver medos e fragilidades. Na verdade, parecia uma conversa que deveria ter acontecido lá atrás, mas fomos atropelados e catapultados para lugares diferentes antes mesmo que pudéssemos dizer coisas que lembrassem compreensão, carinho, afeto e ternura. E mais uma vez eu fiquei sem entender e achei que se tratava de outra ‘peça’ da vida.
Só sei que existir não é algo tão linear ou cíclico e cartesiano, isto é, patologicamente arrumado e disposto em prateleiras ou pintado numa tela de rara beleza e profundidade. Às vezes, existir é fazer parte de um ‘quarto de despejo’, aquele no qual não ousamos abrir para visitação, pois tudo ali é de uma desordem vexaminosa. O que eu estou querendo dizer é que por muito tempo eu tive vergonha de minha história, vergonha da ilegitimidade, da bagunça alheia, das amarguras causadas, das lágrimas retidas, do caos. Vergonha do falatório, dos dedos apontados e do silêncio costumeiro de quem conhece a ausência.
Mas, desgraçadamente a ‘carta’... ela chegou com atraso, chegou quando eu nem esperava ouvir nada. Quando sozinho eu havia cuidado das mazelas, das fissuras, dos talhos imensos, fétidos e pestilentos. Cuidei e com as mãos no bolso, a cabeça erguida fui em frente fazendo o melhor.