À Amada Distante: O Recomeço
Como num sonho. A sensação de flutuar sobre uma substância mais
pesada do que o seu próprio corpo é no mínimo confortante. Ao mesmo tempo aterroriza – a desconfiança em relação ao que te sustenta e o medo de afundar subsistem incessantemente.
A tentativa de estabelecer metáforas e figuras de pensamento a tudo
que me acontece quando se trata de ti renderia um livro de poesias, ao menos. Infrutífera é também a resolução de resolver tudo
racionalmente, de forma a não deixar que nada escape ao escrutínio da análise fria. É o que eu tentei fazer, apenas para bater com a cara em uma barreira.
Diferimos sim. Ao tratar um do outro, ao dizer o que pensamos um
do outro e ao pensar no passado e projetar o futuro.
Primeiramente na forma como nos expressamos, em tudo que está
subjacente a um simples (porém nada simples) "eu te amo". Quando
profiro essas três palavras em conjunto, tenho em mente inúmeras
coisas: o conforto do momento, a felicidade traduzida, a gratidão de ter esta chance, a promessa de querer bem, o desejo de retribuição.
O meu "eu te amo" não suporta advérbios – classificações e
condições. Não te amo apesar de, não te amo porque, nem tampouco te amo enquanto. Não poderia ser diferente pra mim. É aí que acaba a
racionalização. Ao contrário do que disse, não tenho escolha alguma no que sinto por ti.
O meu ponto com isso tudo é explicar que dada a chance de escolha,
a qualquer momento, eu te escolheria. Se eu fosse colocado em uma
situação passada, cujas consequências ditassem nosso futuro junto,
escolheria deixar as coisas exatamente como estão. Por mais doloroso
que tenha sido, problemático e ingrato, faria tudo novamente. Seria
muito mais doloroso pra mim não te ter, te amar e ter a chance de
merecer isso.
Outra diferença que nos permeia está substancialmente ligada à
nossa história. Independente do ângulo que vemos, ou das justificativas que apresentamos, tu sempre foi a vítima e eu o vilão. Como num conto, onde a princesa sofre enormes injúrias por parte do malvado, só para ser salvada pelo príncipe, que a defende e a leva embora para viverem juntos, bem longe. Só que o príncipe e o vilão são a mesma pessoa. Ele tem que lutar contra si mesmo e levar a princesa para longe – de si mesmo. Claramente ele falha, pois é impossível. Ele tenta, em vão, se fracionar, se separar de tudo que ele representou um dia, na tentativa de deixar um fantasma de si mesmo para trás, e então fugir dele.
Onde quer que estejamos, nossos fantasmas são nada mais do que
nós mesmos. Eles não se separam. São partes constitutivas de quem
somos agora. As lições que aprendo são quase sempre sangrentas e
doem ao tocar.
Estamos agora bem longe. Em meio a um bosque muito bonito, e
brigando por causa da grama por cortar. Somos incessantes e
orgulhosos, não nos permitimos aproveitar os frutos do nosso trabalho. Estamos sempre visando o próximo desafio, o próximo problema a resolver.
Em toda ocasião onde haja espaço para escolha, te escolho sem
hesitar. Não quero alguém que more perto, nem que seja mais
extrovertida – e o mais importante, não quero alguém seja mente aberta para ter relações com outras pessoas. Quando digo que tudo que eu quero está arrolado em uma só coisa – tu – não estou usando um exagero retórico. É exatamente isto que tenho em mente.
Pareço idiota às vezes ao perceber a maravilha que é estar com
alguém que te satisfaz por completo. O teu corpo é a minha ideia de
perfeição. As tuas respostas às minhas perguntas são quase como um
soco no estômago, usando uma luva feita com novelos de lã e sonhos
(os comestíveis). Quando penso que não poderia ficar melhor, tu toma
como um desafio e me prova o contrário.
Sei que tu não gosta nem um pouco disto, mas digo de qualquer
maneira: sou teu para que faça o que bem entender. Me mude, me
molde, me dobre. Tenho a absoluta certeza que tudo que fizer comigo
será bom e eu acabarei me orgulhando do resultado. Como um cachorro que dá pulos pela vizinhança quando recebe uma roupinha ou uma tosa.
Te amar não é suficiente. Eu tenho que te apoiar, te sustentar no ar
e te manter alimentada e aquecida. E mesmo que haja tantas coisas em mim que tu não gosta, como ficou claro na tua carta, meu intento não muda em nada. Não imagino a minha vida diferente e nem quero. A não ser que tu esteja ao meu lado em um futuro possível eu jogo esse futuro no lixo, junto com os pesadelos e as tentativas falhas.
Me deixa continuar te amando? Juro que te acordo com bolachas e
suco de laranja da próxima vez.