Cíntia

Lisboa, 13 de março de 1728

Sinto muito Cíntia, mas este sentimento entre nós desarticulou-se.
Sou hedonista. E o prazer entre nós tornou-se insosso. No meu caso, posso garantir, esgotou-se. A sua concepção de vida não coaduna com a minha. Com todo respeito, Cíntia, como diz a canção: se morre a chama, não há mais remédio. Não Cíntia, não é somente o prazer da carne que faz de mim um hedonista, há outros prazeres. Alguns necessários, imprescindíveis, como o ar que respiro. Portanto, o rótulo de hedonista, sei, é reducionista. Posso agregar outros, nem assim me definiriam. Porque sou um ser múltiplo. Uma besta quadrada, como me chamou num momento de ira. E disse mais: mentiroso, caquético, entre outros, que esqueci, porque tenho esse dom. Mas não esqueço os numerosos elogios que me fizera antes, quando a chama ardia: lindo, gostoso, inteligente, honesto, sábio. Interessante, Cíntia, como nós, humanos, mudamos rapidamente de opinião. Não que mudar a forma de interpretar seja incorreta. O mundo passa por transformações. Não podemos nos arraigar em antigas fórmulas. De novo me vem a frase de uma canção: dizer o oposto do que disse antes. A tal metamorfose ambulante. Pelo meu turno, posso afirmar, que não mudei a minha concepção sobre você, Cíntia: uma mulher de luta, honesta, sabe ser cúmplice e parceira em boa medida. Então, Cíntia, não há nada de errado entre nós, em nossa humanidade. Há uma centelha, que a qualquer momento pode acender aquela velha chama.
Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos. A vida é assim: um eterno retorno.
Abraço

Marquês de Morro Abaixo.