- O amor ainda existe -

Algum momento entre 18 e 19 de outubro, 2016, e coisa e tal.

- O amor ainda existe.-

Querido amigo Nagara

Esta cidade as vezes escapa pelos meus dedos

e não parece o lugar onde nasci.

Apesar da hostilidade sempre presente, ainda me fascino a cada esquina,

a cada passo pelos mesmos pedaços de rua onde já caminhei incontáveis vezes, sóbrio ou completamente bêbado.

A verdade é que nada se repete em Recife,

engana-se quem acha que é tudo igual.

É fácil se distrair com as luzes amareladas e as sombras que correm pelas casas de paredes sujas.

É fácil confundir as pichações e ignorar seus significados,

sempre mutantes.

A tinta é a mesma, mas as mensagens divergem como um dia diverge do outro.

Meus pensamentos vão se sucedendo nessa carta e eu sinto que estou fugindo do ponto.

O amor ainda existe, eu acho.

mesmo no meio dessa selva de pedra cada vez mais monetizada.

Eu vejo pessoas na rua, que mal se conhecem, dançando juntas,

Eu vejo rodas de pessoas que não tem dinheiro para beberem sozinhas, mas juntam as moedas e se embriagam de vinho ou vodka barata,

e seus sorrisos são mais reais do que os que vejo nas faces homogêneas de quem bebe ao lado,

em bares onde uma garrafa dágua custa mais do que o que a maioria deles tem no bolso.

Existe amor nessa metrópole suja e fedorenta.

O amor brota da lama, contamina os passantes, mesmo que por só alguns instantes.

Nessas horas conversamos com pessoas invisíveis em outros momentos,

Bêbados, moradores de ruas, pedintes,

ouvimos suas histórias,

absorvemos um pouco de suas vidas.

Andamos em círculos, do marco zero ao arsenal, do arsenal a rua da moeda, indo e vindo,

e nos perguntando a hora do próximo bacurau.

Quando eu estive lá da última vez, sábado passado, me perguntei onde você estaria,

talvez com sua filha entre os braços, ou fumando seus cigarros, freneticamente... angustiado sobre o próximo texto que escreveria.

Puta que pariu, queria ter compartilhado com você.

O amor ainda existe nessa merda de cidade,

por mais que tentem nos fazer esquecer disso.

Existe na cidade e nas pessoas... Nem tudo está perdido.

Não fomos vencidos ainda...

E as mulheres? Ah. meu velho,

conheci umas tantas, e tão maravilhosas, que queria que você as visse.

Conversamos por horas a fio. Não foram conversas românticas ou com intenções sexuais... mas só generalidades, doces e amargas.

Você tem que ver, se é que já não viu... hoje, elas respiram liberdade, agressivamente, poeticamente, sensualmente,

Não é aquela coisa oprimida, calada, fudida que nossas mães foram obrigadas a viver.

Sua guria tende a experimentar algo ainda melhor.

Espero que ela veja um mundo mais tolerante,

por que Recife só tem lapsos de liberdade, principalmente nos finais de semana. A maior parte do povo vive afogado na merda que escorre da televisão, das rádios e das igrejas... Certos de que alcançaram a verdade absoluta. Certos de que suas convicções e certezas são as mais corretas e seus modos de vida são os únicos aceitáveis...

Com sorte, vamos nos esquivando disso tudo e prendendo a respiração.

Tenho que ir por que já é quase manhã e temo que tenha me perdido da idéia inicial desta carta,

como é de costume.

Abraços e paz de espírito.

R.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 19/10/2016
Código do texto: T5796439
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