última carta de amor ridícula

Vou escrever pra você pela última vez sem esperar resposta que me recomponha, ou que traga de volta o que fui. Já me sinto inteiro, não preciso competir para saber quem vale mais ou quem vale menos. Quem seja verme lamentando migalhas. Escrevendo, esqueço e tenho paz. Mas quando acordo ouvindo ecos do passado, eu não posso continuar sem confirmar a ilusão que me alimentou por muito tempo - você foi a maior surpresa que a vida me fez, no melhor e no pior sentido que a palavra “ilusão” possa ter. Era como não esperar mais pela chuva esquecendo que dela, e não de você, dependia os caminhos da renovação. Mas eu fiz muitas concessões, aceitei o personagem que você apresentou. Dei crédito para a nossa ficção e a vida imitando a arte tornou-se metalinguagem. Criamos nosso mundo e nossa história de paixão trágica foi à farsa grotesca. Sei que nunca se apaga a escrita de uma história, nem mesmo rasgando as páginas se ela estiver escrita na pele. Só o louco esquece a história que viveu. Minha insanidade me leva a escrever essa carta para esquecer melhor. Você descobriu tardiamente diferença de não estar do meu lado, sabe que a vida mal remendada teve fôlego porque você respirou do meu hálito enquanto eu seguia igualmente doente. Agora só restam lembranças. Ás vezes, uma canção. Devo dizer, com as palavras de Cecilia Meirelles, que isso não me deixa nem alegre nem triste mas poeta. Você sabe manipular a matéria humana, sabe o quanto de dor depreende do brilho que reveste as armaduras. No entanto, está disposto a ganhar seus próprios jogos e eu escolhi não jogar seus jogos. Ganha-los tão menos. No jogo do amor o perdedor saiu lucrando. Posso escrever e até tornar público agora, o que eu tinha para ganhar trago guardado e quando preciso não morrer da morte que toda gente morre todo dia, escrevo. Dizem que o que se escreve sobre o amor é sempre ridículo, tenho pena de quem não sabe escrever o que sente - esse exercício é libertador. É o orgulho a mão avisando que amar é ser forte admitindo impotência perante o amor. Amar é ser fraco, amar é ser verdadeiro e honesto. Eu prefiro amar e amar, amar amar e mar. Falando por outras metáforas, a árvore cortada foi posta no rio e na canoa entre as margens que se alargaram não avisto terra. E para citar Pessoa além do Rosa e Drummond, eu não te revejo e nem a mim. E dizer isso é como por o barco a navegar. É como sentir na pele o menino Jesus do Poeta maior, descer da sua cruz para troçar das raparigas rindo das flores, colhendo os raios de sol.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 03/06/2016
Reeditado em 27/07/2018
Código do texto: T5656425
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