Carta Enferrujada

Não sei como começar a carta. Não é daquelas que a gente escreve o local e a data. Não é daquelas que termina com "atenciosamente" e a assinatura logo depois. Essa carta é daquelas sentimentais. Em que eu falo, falo, falo e ainda misturo maquinarias no meio.

Eu vou ser sincera. Costumava fazer essas cartas pra outra pessoa, em outra época com outro pensamento, com outra cabeça. Naquela época, anotava o tempo que estava sem vê-lo no cabeçalho. Mas agora não posso fazer isso, porque não te vejo sempre. Não te vejo quase nenhum dia, mas te vejo muito. E isso já basta.

Como toda máquina, o pane no sistema desconfigurou completamente as informações que eu tinha de você. No primeiro dia ele me mandava mensagens de alerta para evitar falar com você, porque ele sabia quem você era. Ele fez reconhecimento facial. Mas o reconhecimento facial deu errado depois de um tempo. O scanner dizia ser outra pessoa e não mandava mais avisos sobre invasão de vírus. O joystick interno controlava meus passos e me faziam esbarrar com você por aí.

Hoje não preciso de joystick. Você mesmo fala. O que é ótimo. Pode falar da sua vida, que eu, como uma boa máquina, posso ouvir sem esgotar minha bateria. As vezes uso a externa também, mas isso não vem ao caso. Eu adoro ouvir o que tem pra contar. É que, mesmo não parecendo, eu entendo. Eu sei como é cada situação. Posso não entender completamente de tudo, na verdade de quase nada, mas sei reconhecer os sentimentos. Sei quando alguém passa por algo que estou passado. Porém, o problema é comunicar isso. As vezes não parece que eu sei. As vezes parece que sou chata. As vezes parece que não tenho assunto ou que não sou animada. Mas se lembra das suas palavras? Você sabe exatamente como eu me sinto. Porque você sente o mesmo por você o que eu sinto por mim. Essa dificuldade de acreditar que somos bons em algo e não saber como se encaixar em um padrão do qual estamos totalmente por fora.

A questão é que eu sei também de algo que você não sabe que eu sei. Quer dizer, acho que sei. É aquela sensação de doar uma peça só sua para alguém que não saberá como usá-la. As engrenagens não irão rodar. Não é tão simples assim. Eu entendo. Você precisa de outra peça. Uma animada, uma que gire as engrenagens, uma que te entenda ainda melhor, talvez praticamente completamente, uma que sabia exatamente o que dizer. E mais importante: uma que saiba se comunicar.

Pior que conheço essa peça. Conheço por alto, mas já sei que é realmente muito boa, e tem uma facilidade enorme com diferentes engrenagens. Principalmente com as enferrujadas. Faz sentido não é? Nós dois sabemos o quanto ela é boa, porque nós dois temos engrenagens iguais, e é claro que a peça chave cabe nas duas. Porém temos sentimentos diferentes sobre ela. Eu admiro. Você precisa. Na verdade é mais que isso. Você gosta tanto dessa peça a ponto de confundir sua necessidade com sua cobiça.

E por causa disso, é que em vez de peça, estou procurando um óleo pra tirar a ferrugem. É o jeito mais lógico de se melhorar. Mas, como eu disse, existe uma ferramenta a mais em mim que outras máquinas não possuem. Ele palpita, ele mente pra mim, ele acredita e ele consegue me persuadir a ainda acreditar no fato de que nossas engrenagens possam se ajudar mutualmente. Porém nem faz sentido, só que a imaginação é tão forte, que me faz acreditar. Sonhar.

O engraçado é que esse tempo tive altos e baixos. Pensei que os avisos de vírus tivessem voltado. Hackearam todas minhas informações. Fiquei sem entender o que estava acontecendo, até minha parte humana resolver agir. Minha ferramenta deu um palpite sobre outra máquina. Talvez melhor. Talvez mais atraente. Que poderia, quem sabe, além de ter a peça chave, também jogar óleo nas ferrugens. Só que era improvável que desse certo. Não tinha como.

Agora o pane voltou. Porém dessa vez, ele manda sim avisos úteis. Avisos que me impedem de seguir mais longe. Posso ir até certo ponto. Mas depois disso é melhor não ultrapassar ou o sistema pode cair e nunca mais funcionar. Eu tenho medo de que nunca mais funcione. Já achei alguém uma vez que pôde consertar da primeira vez que isso aconteceu, mas durou pouco e o trabalho feito foi péssimo. Não posso deixar que isso aconteça novamente.

Então me desculpe, mas você está cada vez mais longe. A peça que você procura está tão fácil de ser encontrada, você só está procurando no lugar errado. Se isso é um jogo, vamos lá só falta o chefão pra passar de fase. Não despedisse as vidas por favor. Elas custam caro, e podem não voltar. E quando não voltarem. Aí já era de vez. As ferrugens continuarão para sempre em nós.

Bec
Enviado por Bec em 12/04/2016
Reeditado em 12/04/2016
Código do texto: T5603453
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.