Carta para uma amiga (2)

Chi&Let's hit the sky - Carta para uma amiga (2)






Amiga, bom dia, boa tarde ou boa noite. O que for do seu agrado, contanto que seja bom. Ah, sim, coloquei parte do título em inglês por saber seres versada nesse idioma. Gosto muito da expressão acima.

É meu desejo para os amigos.

Bom, começando pelas novidades, assisti de novo o "Lincoln". Sim, você tem razão, a película é um tanto escura, pero, exclamo: Pela madrugada, que trabalho sensacional Quando a gente pensa numa realidade em que a escravidão (essa monstruosidade) não foi abolida nos States com uma penada, e sim através de uma peleja cavalar, bem, e todo o debate que o filme contém, homem, Deus, dor, perda, ética, movimento, igualdade, inteligência, vontade, tudo isso está lá de uma forma tão elegante, tão didática, ora bolas, que dádiva pode ser o cinema à serviço da construção do saber.

Olha, eu parei de ler um livro fantástico sobre o Debret redigido por dois super autores, trabalho magnífico mesmo, os caras são bambas, texto colossal e o livro em si, fisicamente dizendo, um luxo só, ganhei de Natal ano retrasado, é tão grande que se boiasse bastava um par de remos para passear com ele numa lagoa, um livro que, além do mais, exibe uma informação inexistente no Google. Sim, amiga, acredite, o Google não tem tudo. Livros ainda retêm conteúdos exclusivos. Descobriram no séc. XXI quatro óleos de Jean Baptiste, enormes, denominados "As Quatro Estações". De cair o queixo. Se um dia eu puder, digitalizo as imagens e envio por e-mail. Deslumbrantes painéis. Todos caso, não consegui mais me aproximar do livro ao chegar na seção em que os autores reproduzem desenhos e pontos de vista de Debret sobre os afro-brasileiros no Rio Imperial, vagando pela cidade como fantasmas, quando muito realizando pequenos serviços, em suma, senti uma angústia devastadora nessa passagem e simplesmente parei.

De qualquer forma, trabalhos como esses, seja o do Debret, seja o do Spileberg, impossível negar que sejam verdadeiras aulas iluminando nossas almas. O corpo físico quer sensações, a mente adora informações, a alma quer expandir, mas, como isso se dá? Creio que na doação. Assim, suponho eu, queimar as pestanas para formular uma equação a fim de que esta seja digerida por outrem no intento de acresce-lo me parece tarefa das mais nobres.

Já te disse que há tempos venho pensando com aguda consideração aos mestres e mestras que passaram pelo meu caminho, desde a infância até sei lá quando. Talvez um dia me lance num texto sobre isso. Ando muito preguiçoso para escrever, embora, no fundo, preguiça seja um termo impreciso para o fenômeno da escrita (pra mim é um fenômeno). Quando Bill W. co-fundou o AA em 1935, ele conhecera um médico chamado dr. Silkworth, que havia redigido alguma coisa sobre o problema do alcoolismo. Ele usara a expressão "alergia", e depois, refletindo a respeito, refez o raciocínio expressando saber não se tratar de uma alergia, mas não conseguia, enquanto médico, achar uma palavra à altura. No fim dos anos 40 a OMS passou a encarar a questão como "doença" e assunto encerrado.

Todos caso, às vezes faltam palavras. Às vezes não. Veja o que disse um ilustre desconhecido sobre os que tem a vocação de ensinar:

"Um grande professor tem pouca história para registrar. Sua vida se prolonga em outras vidas. Professores assim são pilares nas estruturas de nossas escolas, mais essenciais que tijolos ou vigas, e continuarão a ser fagulha e revelação em nossas vidas".

Bonito, não? É o fenômeno da escrita.

Agora, o que eu queria mesmo te contar era sobre uma história verídica, produzida pela Disney recentemente, acerca de fato ocorrido na Califórnia em 1987. O filme se chama "McFarland, USA", protagonizado pelo Kevin Costner. Veja o que acontece - Kevin era técnico de Futebol Americano nalgum lugar bacana quando um aluno desbocado o leva a perder a paciência e num segundo ele se vê com a família num lugarzinho mequetrefe chamado McFarland, uma autêntica aldeia mexicana em território do tio Sam.

A gente vai assistindo aquilo e pensa naquele monte de clichês Disney e de repente me vi com quase lágrimas nos olhos, pois como disse é uma história verídica, Kevin, a família dele e os meninos mexicanos e suas famílias vão se entrelaçando, Kevin, vulgo sr. White, o professor, aquele que viu potencial nos meninos bronzeados, quiçá desmazelados, zero estereótipo caucasiano, e começa então uma força para que se tornem um time de corredores (cross country é o nome do esporte), se ganham o campeonato ganham bolsa de estudos para universidades, e, amiga, quer saber? Ninguém punha fé na coisa e eles faturam o campeonato estadual. E nos próximos 14 anos a cidade de McFarland vai ganhar 9 torneios e as vidas de seus habitantes terá um impulso ascendente, mudanças, mudanças positivas, let's hit the sky.

O sr. White, que na primeira oportunidade pretendia se mudar do vilarejo com armas e bagagens ouviu da sua esposa: nunca me senti tão em casa em toda a minha vida como me sinto aqui.

Ele se aposentou em 2003, o discurso que usou para a garotada no campeonato de 1987, aquele mudaria o destino deles é uma ode ao Chi. Linhas gerais, ele diz muito sucinto: eu conheço vocês e a diferença entre vocês e os outros concorrentes é que vocês levam a vida mais dura que eu já conheci. Vocês correm nos treinos, depois correm para as colheitas, depois correm para casa, nenhum dos adversários sabe o que é isso. Ninguém tem a força de vocês".

O personagem Kevin/White perfaz aquele tipo lacônico que não gasta uma palavra além da conta pra nada, nem por um copo d'água, bem diferente de mim, prolixo de modo quase doentio. De acordo com o Taoismo, cada vez que deixamos sair uma palavra, deixamos sair uma parte do nosso Chi (energia).

De certa forma, não deixa de ser um paradoxo no nosso mundo dual posto sermos compostos de unidades energéticas de frequências variadas e, em alinhamento com o mestre A., alguns de nós necessitam de mais de 30 anos de palavrório intenso para acessarmos aí algumas compreensões sofisticadas para nosso próprio benefício.

Assim, aquele que fala necessita do conhecimento para transmitir e sem os transmissores de conhecimento, o que seria de nós?

Bem, amiga, tenho outras histórias para contar, mas vai ficar para depois.

Eita, já estamos em fevereiro, que beleza!! Uma publicação londrina colocou na primeira página, semana passada: "Brasil comemora carnaval na beira do precipício".

Oh céus, que gente maldosa....

Me despeço com uma linda frase de efeito e desde já lhe desejo um abençoado mês de fevereiro.

"A alma perfeita que reside no invólucro imperfeito nunca se esquece da sua perfeição".



(Imagem: "Colcha de Mãos", Sarah Mary Taylor,  1916 - 2000)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 01/02/2016
Reeditado em 04/06/2020
Código do texto: T5529664
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