Palavreado ao infante

Palavreado ao infante







Meu caro, desde quando enviei-lhe a última mensagem, dada a sua reação, conclui que a sua hermenêutica estava ligeiramente canhestra.
Destarte, não é de hoje que tenho achado vosso comportamento um tanto sedicioso, aliás eu diria isto se configurar conspícuo, para dizer o mínimo e não me estender, embora no fundo quisera mesmo era não dizer nada.

Os laços consanguíneos, entretanto, me obrigam a alguma manifestação.
Desconheço a raiz de suas desafinações porquanto não
tiveste em hipótese alguma seja uma indiferença grotesca ou uma criação tedesca. Ambas as opções convergem até ao "muito pelo contrário".

Todavia, o quadro que vejo agora evoca uma anomia familiar, afinal
somos familiares cuja ausência acentuada resultará na perda da familiaridade, e acho por bem culpar essa situação, dir-se-ia pouco hígida, senão na idade que carregas, nas influências que sofres.
Se bem que, vez ou outra a culpa pouco agrega, o remendo da desculpa
pode servir de ponte e tal artefato tem como função unir.
Meu conselho: urge que dispense alguma atenção sobre o tópico.

Enquanto pensas, e diante do quadro exposto, lançar-me-ei em breve
a redigir um opúsculo e nele, através de tosco solilóquio, construir, talvez artificialmente, alguma resposta, senão para você ou para nós, para minha pessoa ao menos. Assim que publicar te aviso.

Quando o sentimento não se manifesta, os artifícios tapam, inda que de modo provisório, os vácuos que a camaradagem afetiva preencheriam com facilidade. Sei que suas consecuções empresariais são dignas de mérito e carentes de todo foco. Quanto as pessoais, o que equivale dizer ao que me diz respeito, sinto de sua parte, de modo paulatino e progressivo, um proselitismo tenaz encobrindo um antagonismo gratuito.

De minha parte para você, leniência ampla.

Esta missiva, que bem pode ser acusada de rebuscamento leviano, diminuída pelo inequívoco formato de périplo que, além do mais, se for deixado solto como o bisonte na pradaria, tornar-se-á périplo moto contínuo, ou se preferir, moto perpétuo, demanda ou almeja um polimento nas nossas relações.

Desde o arrebol do meu existir já fui acusado de tantas coisas que o fio da meada simplesmente esgarçou-se. Nonada seria a tônica, escol, o que almejei, mas não logrei, e se persistir na catalogação desse suspiro face ao cosmo teremos na soma das palavras apenas um corolário e nada mais.

A vida entre nós deveria ser a de amigos que comungam alheios ao diagrama coetâneo, às armadilhas de diacronismos, ao desenho voraz das aspirações, ou mesmo até diante do doce vácuo da falta delas, amigos que se encontram em marcos temporais e geográficos apenas para usufruírem do intercâmbio de suas essências, que já fizeram monta no tempo passado e não podem semear receios a destinos futuros.

Escrevo, portanto visando renovação da nossa aliança.

Você compreende?

Mesmo que tenha uma leve semelhança a um silogismo barato supor que a ausência de atenção de vossa parte para comigo fique circunscrita pela vossa imaturidade ou por descargas cerebrais oriundas de seu habitat, prefiro apostar nisso do que no menosprezo cultivado no cerne e mascarado por circunstâncias convenientes.

O fator precípuo desta carta - e faço absoluta questão de destacar, pouco importando se para lograr êxito tiver de insulflar nestas linhas redundância desavergonhada - está no aprimoramento de nossas relações, jamais voltadas ao aceitável, em hipótese alguma a indiferença, em tempo algum a precariedade de mera empatia.

O compartilhar da vida, meu caro, consiste em aspergirmos uns nos outros nossas narrativas mais caras. As baratas também. E as curiosidades feitas nos fios das horas. Veja você que outro dia caíram no meu toldo de descobertas pequenos cristais que fugiam a minha cultura geral. Ao contrário do que se pensava, e isso parece notícia fresca, São Lucas nasceu na Síria e não na Grécia. Na mesma ocasião soube que no mês do Ramadan é quando mais ocorrem conversões ao cristianismo. Curioso isso, não?

Bem, eles tem as crenças deles, nós temos as nossas.

Minha crença é descrer na discórdia entre pessoas que não deveriam ter nenhuma cizânia, exceto talvez, no que tange ao programa da pizza aos domingos. Algo que você não compreende quando eu refugo e me toma por misoneísta. Escapa ao seu leitor de dados a diferença de idade entre nós - 30 anos. Cada qual tem sua própria dose de vigor e melancolia. Estupidez tecer comparações. Aos domingos não sei o que me acontece, uma fase decerto, tenho ensejado caminhadas extensas, inter bairros, pela manhã, de tarde e antes de escurecer; quando a noite vem estou em frangalhos, fatigado da cabeça aos pés.

A compreensão do funcionamento do outro, meu caro, é arte de larga lapidação.

A diplomacia entre os que se amam em momento algum pode ser encarada como vocábulo com serventia de aparato para contendas internacionais e sim artigo de luxo pessoal, o luxo da gentileza, que por sinal gera gentileza e acumula por magnitude, se transforma em bondade automática e compreensão abrangente. A partir daí você olha para os pés do sujeito e pensa que talvez os sapatos dele estejam apertados, por isso ele manca. Não o faz por gosto ou desdém. Está restrito por limitação.

Fiquei um tanto desapontado com seu gesto destemperado e mais ainda quanto a quebra de privacidade da nossa estrita comunicação. Toda a amizade desenvolve um linguajar próprio que, se por ventura acarreta dissonância, o trilho do bom senso ressuscita através do diálogo entre as partes. Um amigo jamais deve utilizar as palavras do outro para fora de seu círculo, especialmente com intento de achincalhe. Isso não se faz. As coisas são resolvidas entre amigos, percebe?

E, lhe pergunto, existe título mais apropriado para a relação entre os seres do que a amizade? Eu simplesmente duvido. Muita gente se esconde por detrás das mesmas nomenclaturas sociais sem se darem conta que os títulos de marido e mulher, pais e filhos, irmãos e irmãs não são garantia e ou prevenção nenhuma de ódios, volúpias, torpezas, cobiças, mesquinharias, são tantos casos de desequilíbrios em tais alçadas que enfermarias e cemitérios não estão dando conta. Você acha que essas pessoas nutriam amizade umas pelas outras?

Eu lhe digo que não, pois a amizade enxerga.

Não posso afirmar, senão por diletantismo, o efeito destas palavras sobre sua augusta pessoa. Sei das minhas intenções, mas não movo marés, quanto mais o coração alheio. Se o barco continuar correndo nesse rumo,
com sorte nos vemos em 3 de maio, em honra de São
Felipe, cujo onomástico celebra-se nesta data. Pelo que se sabe, Felipe era sincero e por tantas qualidades Jesus lhe tinha uma atenção especial.

Ah, não te contei, sabe como os adeptos do Ramadan chamam Jesus?
O Homem da Cruz.

Franzi o cenho quando ouvi essa expressão.

Fazer o que? A história se repete, talvez um dia mude, alterando assim esse estranho cacoete da criatura ansiando conhecer os estatutos e juízos da mesa de Deus, porém, incapaz de sentar-se junto a Ele.




(Imagem: Johannes Augustin Rösel von Rosenhof - 1705-1759)
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 24/11/2015
Reeditado em 03/07/2020
Código do texto: T5459929
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