A responsabilidade de quem escolhe ser gay

Meu nome é Flor.

Com apenas dez anos, eu começava a amargar as piores incertezas da vida. Ser homossexual está longe de ser uma opção, como as pessoas costumam falar. Eu jamais escolheria a dor de ouvir minha mãe dizer para todo mundo que ter um filho gay seria a maior decepção da vida dela. Mas, por quê, mãe? Eu sempre fui gay, mas o seu comentário, dito à mesa do almoço de domingo, atrasou a minha libertação.

E assim começou o dilema. Para não decepcionar minha mãe, resolvi esconder dela grandes dúvidas, medos e desejos. Não valia a pena derramar nenhuma lágrima dos olhos dela por minha causa. Acontece que o tempo é cruel com quem se esconde de si mesmo. Ainda que seja pra não fazer alguém sofrer.

Na época, o assunto “homossexualidade” não era abordado de maneira tão aberta e as reuniões em família ficavam ainda mais insuportáveis. Os parentes começaram a me olhar de uma forma perturbadora. Perguntavam demais... “cadê o namorado?”, “que roupa estranha é essa?”, “por que você não é tão feminina como sua prima?”. E uma grande amargura se juntou com toda força no meu coração. Comecei a agir de maneira que agradasse a maioria daquelas pessoas. Sim, eu comecei a namorar garotos. E é uma fase muito triste, pois nenhum deles tinha culpa do meu sofrimento.

Por vezes, eu olhava nos olhos de um deles e tinha vontade de pedir socorro. Namorá-los não era tão ruim, pois eram meus amigos. Eram pessoas agradáveis de se ter por perto. O ruim era meu coração só dar lugar à amizade. Para fazer uma comparação mais palpável, era como se eu fosse obrigada a sentir desejo por um irmão de sangue. Horrível sensação...

Como eu queria dizer... Como queria chorar... Pedir desculpas a cada um deles por isso.

A tortura psicológica está bem longe de terminar por aí. Porque vem uma das piores partes: a Religião! Não era nada agradável ouvir que eu era uma aberração aos olhos daquele que me criou. Nem que “Deus ama o pecador, mas abomina o pecado”. O que aquilo queria dizer? Que eu não podia amar? Infelizmente, comecei a acreditar nisso fielmente. Foi aí que inventei ser ateia. Isso mesmo! Eu inventei. Era muito mais simples falar isso para as pessoas a dizer que eu odiava Deus. Porque eu o odiava! Me destruía pensar que o Criador me fez de um jeito que Ele mesmo abominava. Não fazia sentido.

Depois de tudo isso que se acomodava em minha cabeça, tinha eu ainda que aguentar os comentários de pessoas que pareciam não se importar verdadeiramente comigo. O mais famoso era: “Adolescentes... Todos revoltados!”. Ser adolescente já não é tão simples, afinal, começamos a nos conhecer de outra forma. Imaginem então a sensação de se desconhecer.

Aos 17 anos eu comecei a ver que tinha perdido bastante coisa. Tinha experimentado o coração finalmente bater mais forte por alguém, mas era por uma garota. O que me deixava visivelmente abalada. Visivelmente para quem, se todo mundo só me enxergava como uma revoltada que tinha tudo nas mãos? Nem chorar me cabia. Eu não podia explicar o motivo do choro, o motivo de não mais querer sair de casa. Não valia a lágrima da minha mãe. Eu não podia decepcioná-la. Ela era o maior amor da minha vida! Jamais suportaria vê-la sofrer porque eu, simplesmente, não era forte o suficiente para me esconder. Eu tinha que me esconder mais! Muitas vezes a observava fazer suas atividades domésticas e, em silêncio, pedia perdão por ser uma filha assim. Que só trouxe desgosto. Era a pior hora de um dia inteiro.

Não via mais motivo para viver. Os pensamentos começavam a ter um único rumo. A morte. Tem gente que aguenta fingir ser o que não é. Eu era incapaz de aguentar mais um dia. Foi quando resolvi abrir o jogo. E o que podia ser, finalmente, uma libertação, foi me trancafiando muito mais em meu quarto. Por que as pessoas que mais amamos nos deixam atravessar lagos tão negros? Tentem imaginar como foi confessar para quem mais amo que sou tudo o que ela não queria que eu fosse.

Os pais dizem que sofrem, que não estão preparados, que é uma fase. Mal sabem eles que o nosso sofrimento é infinitamente maior. Que o nosso sofrimento não se limita a pensar no que os outros vão dizer. Pelo contrário, queríamos gritar pra todo mundo. Talvez assim, aliviasse tanto tempo de silêncio.

Ao mesmo tempo que confessar tira um peso das costas, também traz consequências difíceis de lidar. Basicamente, somos encurralados. Não devemos falar nada para os parentes. Nem pra ninguém, se possível. Resumindo: somos motivo de vergonha.

Namoradas? Nem pensar! Começam a querer escolher com quem devemos nos envolver, porque, afinal, é a imagem da família que está em jogo. E, no fim, ninguém será “bom o suficiente”. Qualquer mulher sempre será fútil demais, nova demais, velha demais, problemática demais ou não merece respeito porque não teve ousadia de enfrentar a família. Não contou a verdade (????????).

“Você vai ser curada!” ... Eu já quis muito! Mas queria ter sido curada de todas as doenças. Só assim, não teria sido a última a ser atendida quando tive uma crise de apendicite. E por quê? Porque não gostam de gay! “Se ela é capaz de aguentar “outras coisas”, aguenta muito bem a dor de uma apendicite!” – Infelizmente ouvi isso.

Queria eu ser curada da vontade de ajudar as pessoas. Só assim, teria me livrado do constrangimento de ter meu sangue negado no Hemocentro por ser o sangue de um homossexual. Queria ser curada também da imensa vontade de viver livremente, pois assim, teria evitado a surra que levei a caminho de casa, simplesmente por ter feito um carinho na garota que faz meu coração bater mais forte.

Queria eu ser curada do amor que sinto por ela. Queria a cura pro meu sonho de segurar a mão dela e andar sem medo pelas ruas. Queria me curar da ansiedade de ver minha família um dia se importar comigo assim como se importa com a opinião alheia.

Será que um dia saberão que a cura de tudo isso está num lugar onde eles nunca procuraram? (Dentro de si mesmos).

Enquanto essa cura não chega, vou escondendo de uns, fingindo para outros. Vivendo como a criminosa que nasci para ser. Ainda que o pior crime não se compare a amar alguém do mesmo sexo.

Kamilla Fialho e a Essência Das Descobertas
Enviado por Kamilla Fialho e a Essência Das Descobertas em 08/09/2015
Reeditado em 23/10/2023
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