Temos Sorte

Acho que tivemos sorte. Não acreditaria nela se não o conhecesse no último dia de trabalho naquela livraria. Era final do expediente, chovia muito, motivo pelo qual ainda estava lá, o mesmo que o fez entrar. Não nego, gostei dele, expressão de carência, olhar de mistério, charme natural, exatamente por isso fiz questão de atendê-lo. Ofereci o melhor sorriso e recebi outro de volta, me pareceu dúbio ao explicar que estava fugindo da chuva, mas aceitaria sugestões de leitura. Fiquei pensando qual seria o seu gosto literário, o que poderia indicar, não tinha muita certeza quanto ao seu estilo, bem desenvolto para um aparentemente tímido nerd e com totais segundas intenções me vi segurando um romance, eu acho, lembro que tinha um coração enorme desenhado na capa. O temporal passou, ele não. Ficamos ali falando sobre livros, músicas, cinema, mudanças de tempo e em menos de dez minutos de conversa já sabia até o nome do seu cachorro, sorte gostar de cães, pensei, tenho quatro. Estava prestes a chamá-lo para um café quando fui convidada e naquele momento soube que não era só eu. Entramos numa cafeteria bem em frente. Tocava Coldplay e tudo ficava mais perfeito. Ele também gostava da música e da banda, o que aumentou consideravelmente as chances de um segundo encontro. O lugar era agradável, a trilha sonora ajudava e a conversa fluía naturalmente, como acontece em conexões especiais, dessas que a gente tem uma ou duas vezes na vida. Faculdade, parentes, amigos, de novo cachorros, meu novo emprego, sua promoção, algumas pausas e nem o silêncio, que vez ou outra aparecia, nos deixava desconfortáveis. Nossos olhares falavam quando as palavras não davam mais conta. Passamos a fase dos livros, da chuva, do café, das confissões... e o que viria a seguir? Não há manual pra esses momentos, mas a intuição dizia, e sempre confiei nela, que devia pedir o seu contato. Ele mesmo gravou o número no meu celular. Nos despedimos com um beijo no rosto, no canto da boca. Devia ter beijado pra valer, mesmo com hálito de café, mesmo tendo nos conhecido a menos de duas horas. Fomos para lados opostos da mesma rua. Resistindo ao impulso de olhar pra trás, contei exatos vinte passos, não sei exatamente o motivo. Meu telefone tocou. Na tela estava escrito: "Futuro amor da sua vida, chamando". Chamado atendido. Voltei, dessa vez correndo e sem contar as passadas. Nos beijamos. Teve gosto de chuva, de histórias, de café, de ansiedade, de paixão e de sorte. Gatos pretos e espelhos quebrados não me assustam mais.

Débora Brun
Enviado por Débora Brun em 21/08/2015
Reeditado em 14/06/2016
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