CARTA DE SUICÍDIO

Pretendo ser breve, pois um amigo certa vez me disse:

“Se você não for um Dostoievski, não adianta escrever muito, pois ninguém vai ler.”

A ideia de que a vida é efêmera e sem sentido, acompanha-me desde a minha juventude. Nessa época eu tinha um fascínio pela segunda geração do romantismo, como Álvares de Azevedo, Casemiro de Abreu e, sobretudo, Lorde Byron, protagonistas do chamado “mal do século”. Havia uma necessidade de viver intensamente, desfrutando todos os prazeres em seu extremo, com a disposição de pagar o preço de um comportamento tresloucado.

O “mal do século” significava a morte prematura.

Alguns textos meus exprimiam esse sentimento:

“No deserto sob o sol forte

Caminho em desespero e sem norte

Entregue ao sabor da minha própria sorte

Aguardando o momento da esperada morte”

Inspirado em Álvares de Azevedo:

“Eu deixo a vida como deixa o tédio

Do deserto, o poento caminheiro,

- Como as horas de um longo pesadelo

Que se desfaz ao dobre de um sineiro;”

A vida tediosa, sem perspectivas, vazia, cujo maior prêmio é morte.

Eu me sentia integrante dessa categoria de pessoas e acreditava que deveria morrer com 25 anos.

Álvares de Azevedo, apesar da vida boêmia e de uma tuberculose, contudo, morreu, aos vinte anos, por conta de um câncer ósseo decorrente de uma queda de cavalo.

Lord Byron, viveu com intensidade. Rebelde em relação às convenções morais e religiosas sempre exibiu cinismo e demonismo em suas obras. Mas sua fama decorre também da extravagância de sua vida, com numerosas amantes, dívidas, separações, alegações de incesto e homossexualidade, além de álcool e drogas.

Um professor de cursinho, dizia que ele tomava caipirinha de éter.

Morreu aos trinta e seis anos, lutando ao lado dos gregos pela sua independência da opressão turca.

Isso indicava que a morte prematura dos meus heróis foi muito mais acidental do que provocada por um comportamento autodestrutivo.

Alguns astros do Rock, sobretudo Sid Vicius, do Sex Pistols, tiveram uma vida muito mais autodestrutiva, cercada de drogas e álcool, depressão e desprezo pela vida.

Os anos se passaram... e eu não morri.

Entretanto, o sentimento sobre a falta de sentido para a vida permaneceu.

Autores como Albert Camus e Voltaire enriqueciam minhas convicções e uma frase do personagem Martinho, do romance Cândido, era a minha única certeza: “de que o homem nascera para viver nas convulsões da inquietude ou na letargia do tédio”.

A insatisfação da existência e uma contínua frustração destruíam rapidamente qualquer momento de alegria, que se dissipava como uma névoa com o sol da manhã.

A vida se resumia em dor, talvez inconscientemente provocada, como que o resultado de uma necessidade de penitência, flagelo.

A exposição do corpo ao limite da linha entre o céu e o inferno. A única forma de suportar a dor é minimizar o prazer. Tudo se anula e esse equilíbrio acaba por tornar a vida mais enfadonha.

Nesse cenário existencial eu conheci “O Lobo da Estepe”, de Herman Hesse. O personagem do livro vive um constante pesadelo, dividido entre o seu lado “homem”, com um verniz da civilização burguesa, mas hipócrita e infeliz e o seu lado “lobo”, selvagem e autodestrutivo.

Não vê qualquer perspectiva a não ser o suicídio e decide que deverá morrer na data do seu aniversário de 50 anos.

Evidente que me identifiquei com o personagem, tanto em relação à sua “bipolaridade”, como em relação às facetas comportamentais. Nessa fase da vida, ao contrário da juventude desvairada, em que se quer fazer tudo e a qualquer preço, agora, nada parece agradar.

O homem está condenado a suportar sua própria existência, uma vez que não é possível fugir de si mesmo.

Não há mais aquela ânsia pelo prazer extremo. Estou próximo de completar 50 anos...

A natureza antagônica do Lobo da Estepe não é incomum. Somos, evidentemente, um poço de contradições. Contradições de comportamento, de desejos, de sentimentos...

O que existe de nocivo é que o homem e o lobo se destroem.

Assim, a única forma de suportar a própria existência é buscar um equilíbrio.

Como a água, que preenche os vales e aplaina as montanhas, no dizer de Tao Te Ching.

Apesar de sentir a mais completa inadequação da minha existência, nunca consegui encontrar alívio numa figura divinal. Minha mente não concebe um ser interventor. Por essa razão, a figura de Deus não se encaixa na moldura das minhas convicções.

Para alguns, a descrença em Deus pode ser a razão do sofrimento. “É justo, mas não consola”, (Máximo Gorki).

Perto de completar 50 anos, tenho aquela sensação de proximidade do fim.

Assim como Ricardo Godin, “Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.”

Para isso preciso morrer.

Metaforicamente.

Deixar de lado uma vida errante e ser um novo homem, valorizando e aprimorando as minhas virtudes e exorcizando as idiossincrasias nocivas.

Não é fácil.

Não consigo crer em Deus, como pregam as religiões.

Mas acredito numa Lei Cósmica, que rege o Universo e as relações humanas. E o sentido da vida só pode ser um: O amor!

Essa é a chave para eu me humanizar e viver o restante dos meus anos de vida com um pouco de alegria, não apenas suportando o convívio comigo mesmo.

Mas verdadeiramente compreendendo o significado da existência.

Portanto, preciso morrer. E renascer das cinzas.

Contemplar o sol todas as manhãs, correr na chuva, comer pastel na feira. Ir ao cinema à tarde e comer pipoca.

Tomar um Jack Daniel’s deitado no sofá, assistindo TV, afinal “Há um lugar especial no inferno reservado àqueles que desperdiçam um bom uísque.” (Quentin Tarantino).

Almoçar no Boa Vista, um Abadejo com legumes na manteiga.

E, sobretudo, ter a companhia de uma amiga, amante e confidente (Juca Chaves).

E, ao seu lado poder viajar até às estrelas.

Deste modo, preciso morrer.

“Pois se uma estrela há de brilhar

Outra então tem que se apagar

Quero estar vivo para ver

O sol nascer, o sol nascer, o sol nascer.” (Raul Seixas)

Advogado, 50 anos, encontrado morto em seu apartamento, vítima de um mal súbito.