Mil
E te olhar assim dormindo pesado na leveza da delicadeza que assoma de cada poro seu ainda continua sendo inenarrável. Eu maculo o papel, bato a cinza, sorvo o café e te olho e sorrio comigo, pra mim, sozinho. Sou uma fera refestelada depois do banquete. E você baba no meu travesseiro. E minha camiseta de banda que você desconhecia envolve esse corpo que há 12 horas era só um simulacro de realidade, uma pretensão irrealizável. E metade de sua bunda foge aos meus cobertores e me suscita vontades ferinas. Tão mais superficiais nossos sentires quando as palavras não atingem o objetivo de exprimir aquilo que nos atinge. Tão mais fluentes as palavras quando estamos longe de qualquer possibilidade de registrá-las. Tão perto de você eu estou que me distancio da realidade que me circunda. Tão profundas suas olheiras que oniricamente estar sob elas infla meu ego. Tão bom o bem que você me faz que queria afundar uma chave de fenda nas engrenagens do tempo e congelar esse momento, esse final de semana, esse borbulhar que sinto no estômago quando você se mexe e ameaça acordar e eu ser sua primeira visão. E o medo da amnésia do álcool no primeiro segundo do filme da retina. E escrever uma poesia no seu corpo. Como disse, como prometi e não cumpri. Porque não aguentei esperar. Porque esperar demais se tornou demais. Porque a urgência urgiu, suplicou. E eu me rendi. E eu maculo o papel porque nele as coisas são mais bonitas, não são efêmeras, e nele a história fica. Nossa história nele se finca, se incrusta, se mistura. Se eterniza, se fortalece, se enternece, se amolece, umidifica. E se você acordasse agora? E se eu te acordasse, te esfregasse esse papel na cara? Já estanquei tanto sentimento bom por medo de vê-lo humilhado que a insegurança e uma indiferença mordaz tomaram morada em mim. Queria me entregar a você como lhe entregaria um copo cheio de cerveja. Sem o receio de que você o derrube ou o ache morno. De segunda. Insosso. E se eu te acordasse beijando suas clavículas, suas pintas, suas pálpebras, sua testa, sua boca carnuda? Eu encho outra xícara, reacendo uma ponta, afago o gato que repousa no meu colo com a mão livre e afago com os pés o cachorro que deita sob a mesa e se sente em paz assim como eu me sinto sabendo que: sim. Aconteceu, está acontecendo. E não sei como terminar isso, porque não quero que isso termine. Termino com reticências. Porque é isso que nós somos no agora. Só tenha a ciência de que te quero. E não é pouco. E obrigado. Por surgir. E ficar.
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23/06/2015 - 00h33m