M U T I L A Ç Õ E S
Tornei-me assim, e fui vivendo...
Em cada esquina apresentada,
um leão, um atirador de facas,
um artesão sem dó
Pisei na arena dos gladiadores,
tiraram-me os dedos,
as unhas, o queixo
e todo o resto dessas dores
Tornei-me contra o sol
e a luz impertinente
cegou-me as vistas
já cansadas de tanto ver
Briguei em vão com lutadores
nobres, treinados com fervor
Deixei u’a mão aqui, outra acolá
— virei maneta de impenetráveis sonhos
De tanto caminhar, perdi os pés
As pernas bambas tremem
sem muito o que sentir —
— não me pertencem mais!
Cortaram meus cabelos,
com eles foi-se o escalpo
como um troféu selvagem
que espetam em seta torta
De tanto sofrimento,
deixaram-me sem partes
— há pedaços no chão,
há pedaços no ar...
O meu nariz, minha boca torta,
meu ouvido surdo,
os meus olhos, tudo em mim
foi relançado ao vento
do norte e d’outras vidas,
em dias de desgosto
ou em cada sim ou não
de tardes deste agosto
Ficou a minha angústia,
meu canto, minha agonia:
— Tranca-me em teu coração
e atira longe a chave pela janela!
Cata algo que ainda sobra,
coloca-o numa caixa como um souvenir
Restou-me ainda o verso, minha poesia:
— Salva o resto que sobrou de mim!