Testamento

Era início de noite quando fui conduzida por um imenso desejo de pintar uma tela. Se houvesse em mim, que fosse, uma pequena alma de artista, teria feito isso. Teria deixado pincéis percorrerem a tela da vida. O céu seria ora azul, ora cinzento, como as incertezas dos nossos instantes seguintes. Nuvens densas, carregadas cobrindo e descobrindo arco-íris. O vento perto delas soltando um suspiro. Montanhas cobertas de um verde lindo ou de árvores desfolhadas na chegada do outono. Mares de saudades, mares de sonhos,mares de fantasias, com suas ondas se despedindo das embarcações. Embarcações perdidas em sua dimensão, se perguntando onde estariam os que um dia naufragaram. Embarcações de ilusão. Nessa tela o sol beijaria a lua de prata. Eu queria nesse instante ser um artista que soubesse capturar a alma da emoção que paira. Queria saber desatar o nó de marinheiro de uma garganta. Mas também gostaria de ter o dom de compor uma melodia que se fixasse nessa tela. Seria uma canção de um marinheiro no cais do porto em uma madrugada coberta de neblina, tendo à mão uma garrafa de rum e nos lábios um poema qualquer. Lá vai ele pelas horas, cambaleante e dono do mundo a sua volta. Lá vai ele segredando suas incertezas e seus feitos a algum cão magro, alto e encolhido em um canto sobre um velho jornal. O cão abre os olhos, finge ouvir, contenta o marinheiro, volta a dormir. Creio que na tela da vida as cores se misturam e tudo é arte de amadores. Por sorte tenho milhões de horas a meu dispor. Se não as tiver, dou por encerrado o desejo. Assim sendo, o que fazer senão caminhar também pelas madrugadas das horas finitas? Bastaria um andar sossegado, de quem contempla o céu, o mar, os barcos, os náufragos, os marinheiros perdidos, o cão adormecido, os quadros inacabados! Bastaria tudo isso, repousando na calmaria do meu olhar perplexo ante a tela da vida.

Simone Stone
Enviado por Simone Stone em 01/04/2015
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