CARTA DO REFLEXO NO ESPELHO A ZULEIKA DOS REIS

       REPUBLICAÇÃO - TEXTO DE 03 DE DEZEMBRO DE 2013



 
     Zuleika, eu sou seu reflexo no espelho. Sei que você anda evitando me olhar, passa sempre rápido e de viés pelos espelhos todos e quando, eventualmente, precisa – nunca sozinha mais - por o pé para fora do apartamento, mal passa um pouco de pó compacto e um batom ligeiro.
     De todo modo, das poucas vezes nos últimos tempos, em que nos temos defrontado, permita-me dizer do grande incômodo de ver você  dizer e repetir :

      “Eu não sou real, eu não existo”.
      “Minha vida, a de personagem secundária de mim mesma, é a vida sem saída de uma personagem de teatro do absurdo”.
     "Passo o tempo todo tentando acordar de mim e não consigo”.
        “Nos meus ossos, do corpo e da alma, vive a dor infernal de passar a vida a tentar compreender o que jamais se deu nem se dará a compreensão, essa dor que me envelhece 10 anos em cada ano.”  


     Você vê, Zuleika? De tanto ouvir tais coisas, posso repeti-las, palavra por palavra.
    Eu compreendo. Sei que muitas vezes você nem chega a ver a vida como sonho, mas, como puro pesadelo, mesmo. Sei das suas razões nada desprezíveis para sentir assim, a vida.   
    Sei, também, que coisas ainda a fazem se sentir um pouco real: as dores agudamente crônicas, nos joelhos, na coluna, no quadril – ah, brava herança genética - que mal lhe permitem andar e a fazem se sentir, todos os dias, com uns 200 anos; por outro lado, a presença da mãe e a presença, hoje muitíssimo menos constante, do seu anjo da guarda encarnado, também ainda a fazem se sentir real, bem como os telefonemas de alguns poucos amigos que restaram; assim também o contato com os companheiros do Recanto das Letras, as leituras, as audições e comentários que eles fazem para textos seus, para cantigas suas; as leituras e comentários seus para os textos deles: são as coisas que a fazem ainda sentir-se real.
         A verdade é que entendo plenamente essa sua tão grande dificuldade para se sentir real, com o Sol, a Lua, as Estrelas, a Paineira (...) sempre do lado de fora da janela. Eu entendo.
        Zuleika: eu, reflexo seu, não sei bem o que lhe dizer, mas, olhe-me mais, desabafe mais comigo, não se tranque nesse desalento mais velho do que o mundo. Brigue comigo, se quiser, que eu aguento.
        Eu, seu reflexo, tenho mais fé do que você, por isso rezo por alguma sua paz. Para mim você é real, pode ter certeza. Eu, seu reflexo, tenho certeza de que você é real.