Carta ao pai do século
Me sento a cama e olho para a cabeceira, aquele caderninho estampado com a bandeira do Brasil na capa, que ganhei em uma loja de lembranças – no dia em que comprei uma camisa indiana que eu estava namorando há quase um mês – ainda estava quase totalmente em branco. As folhas que dele eu usei foram preenchidas com o endereço de um amor perdido, o desenho parcial do contorno do apartamento e umas anotações sobre como eu odiava a aplicação do atual modelo econômico. Umas 5 folhas no máximo. O resto estava limpo, brilhando, pedindo tinta de caneta ou um pouco de grafite. Mas aquele caderninho tão bonito, como poderia eu, eu, escolher dentre tantas coisas, alguma coisa especial para pendurar ali? Poderia colocar um soneto, ou três sonetos, ou fazer um caderno de sonetos e dar de presente a mim mesma. Poderia também fazer uma lista homérica das coisas que quero fazer antes de morrer ou escrever uma carta, não um e-mail, uma carta não enviada pelos correios, pro meu:
Meu destinatário,
Posso te chamar de sagitariano, daquele puro, absoluto (assim como eu), um viajante nato, as vezes corajoso na medida e as vezes tão corajoso que chega a ser burro. Meu amor, meu falo, o esteio, o macho-alfa (não o clássico, o idiota e imbecil, o chamo assim no melhor sentido da palavra, o homem que finge o tradicional e a grosseria, mas aceita de fato, o amor) daqueles que mesmo com a idade e os tempos de cerveja contínuos, tem a barriga grande e continuam fortes, consegue até carregar o peso da macacaúba nas costas, velho, malandro e comedor. Como tudo hoje pode parecer uma neurose, posso pensar que aprecio tanto Nietzsche, pela semelhança que tem seus bigodes? Não me denomino nada, mas se perguntassem o que eu acho, me pedissem uma escolha, uma opção, ficaria com o relativismo. Sem instrução, faltando alguns modos, vocabulário escasso, em contrapartida, conhecedor do universo, pique, disposição, sabedoria, voz grossa e algumas cicatrizes na alma.
Encontrei minha natureza na tua natureza, a qual eu odiava, a qual me entediava. Não é uma carta de amor, não será uma carta entregue, não será uma prece atendida, tampouco entendida por quem a dedico. Também não peço um perdão, em nome de todos como eu, não peço que justifique qualquer indireto abandono, só preciso fazer essa observação, deixo interpretar como um agradecimento, mergulhado no carinho sincero e puro que me foi dado e ensinado pela minha genitora. Eu não te trago uma camisa do mengão, um violão novo, não comprei um relógio Cartier, não te dou a certeza que te chamarei para me entregar no altar (se houver um), muito menos sei se te darei um neto. Agora, chegou a parte em que eu me coloco num lugar exposto, num palco, onde revelo o que só hoje, após 18 poucos e longos anos, algo nem a mim eu revelei, meu reflexo: Eu sinto, profundamente, relutantemente, insanamente, e agora, conscientemente, a tua ausência.