Carta do Tio Ângelo ao Deputado Florisbelo

Sentei-me na varanda com o Tio Ângelo e ele pôs-se a ler a carta que reproduzo a seguir. Ao final da qual deparei-me com o brilho dos seus olhos, que imaginei provocado por uma repentina visão da bandeira brasileira. Mas não era. Tratava-se de uma vistosa morena, 17 anos talvez, vestido curto e coxas de lua cheia, que entrava pelo portão com a nossa Pequener. Eram amiguinhas.

“Caro Deputado Florisbelo Lingualoquaz,

Tenho recebido inúmeras correspondências suas – permita-me o tratamento menos formal – como a de hoje, que me encaminha o livreto contendo a sua atuação parlamentar em Brasília, ao longo de 1997.

Tenho dedicado a todas a devida atenção. Muito maior, porém, poderiam ser a minha atenção e apreço pelo parlamentar. Bastaria que em sua atuação pudessem estar contemplados quatro pontos que, no meu entendimento, contribuiriam em muito para a redução dos problemas que afligem a sociedade brasileira. São eles:

1. Eliminação do Voto Obrigatório

Se as pessoas não fossem obrigadas a votar nos políticos, o comprometimento deles com as causas sociais, com as causas coletivas, seria maior. Seria outra a qualidade das pessoas investidas em cargos políticos. A carreira política não seria vista apenas como a chance de uma realização pessoal.

A obrigatoriedade do voto é o que explica a eleição de uma pessoa pelo Maranhão, por exemplo, sem que ela nunca tenha estado lá. Muito mais poderia ser dito, mas não desejo que esta carta fique muito longa.

2. Revisão das Condições da Imunidade Parlamentar

Foi atrás da “imunidade parlamentar”, que o impediria de ser processado, que o empresário Assis Chateaubriand elegeu-se senador. Está no livro Chatô, de Jô Soares, não sou eu quem o digo. Nessas condições a imunidade parlamentar é uma excrescência e em nada contribui para a grandeza da vida nacional.

3. Instituição da Fidelidade Partidária

O mandato não deveria ser da pessoa. Mandato não é carro, relógio, etc. Ou camisa, que se troca todo dia. O parlamentar troca de Partido e leva o mandato, como leva a mesa, seus pertences, etc. O mandato está mais relacionado às pessoas que elegeram o político, identificadas com o Partido a que ele se filiou.

4. Supressão de Vantagens que Signifiquem Mordomias

Não sei se na Inglaterra ou na China, li há algum tempo que os deputados se locomovem por meio de bicicletas ou se utilizam de seus carros pessoais. A estrutura organizacional subordinada a um vereador em muitos casos é bem maior que órgãos do executivo municipal, estadual ou federal. O período de recesso a que um parlamentar tem direito é um desrespeito para com a maioria dos trabalhadores do país. Há algum tempo noticiou-se no Rio de Janeiro que os vereadores desejavam ter garantida a aposentadoria ao final do mandato, para o caso de não serem reeleitos. Não é à toa que a Câmara dos Vereadores no Rio ficou conhecida como a “Gaiola de Ouro”.

É evidente que um político cuja atuação seja marcada pela defesa intransigente desses pontos terá não só o meu respeito e admiração, mas o de um número cada vez maior de eleitores. É claro que também terá a reprovação e a indiferença da maioria de seus pares, acostumados que estão, há décadas (ou mais), a todo tipo de vantagens cujo desapego não poderiam admitir.

É sua a opção, caro Florisbelo.

De qualquer modo, espero que esta o encontre com saúde e que não lhe tenha causado u’a má impressão. Tratam-se apenas de digressões de um brasileiro que se acha no direito de pensar no que poderia ser melhor para o seu país.

Atenciosamente,

Ângelo Karikatu”

Rio, 14/02/1988

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 20/02/2015
Código do texto: T5143451
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