Aquarelista

Prezada Aquarelista, boa noite.







Preciso explicar, antes de dar corda numa ladainha sem freios, o motivo desta carta. Foi seu e-mail. Especificamente, o trecho em que dizes que sua arte é uma espécie de oração. Aí fez um tuim na minha cabeça. Saí me perguntando: cade minha oração? Então a carta veio, de roldão.
Curioso isso. O que seria, além do citado? Uma necessidade de comunicar mais, de expandir a troca e também, evidente, de retribuir. Assim, desde o início e o que se segue, eis minha aquarela pra você. Nem mais, nem menos e doravante lastreado por imperioso motivo - a oração. Nas suas palavras: "A pintura é minha oração: através dela sinto-me conectada a algo que não sei explicar e a quem sou humildemente, agradecida".

Na hora em que li isso, como disse, fez tuim. Posso não ser o Visconde de Astúrias, mas se tornaria, você há de convir, completamente ignóbil responder com algo do gênero: "ah, então ta, saudações e nos vemos em 2054, no evento de Artistas Anônimos na Ilha de Páscoa". Não, embora menos por questões diplomáticas, imprescindíveis, não há dúvida, porém no presente contexto, mais pelos fios invisíveis que compõem a oração. Porque, em última análise, uma oração pede outra oração. E assim as coisas saem andando, se movimentando, como notas saindo de um vibrafone.

Saí da cama hoje as 6:30. Às 8 conversei com J.C. porque, sem Ele, as coisas ficam ásperas. Nove e pouco um pãozinho e uma banana, correndo dali em busca de condução. Nove e trinta estou subindo as escadas para a reunião domingueira do grupo de salvadores do mundo. Sim, estamos salvando o mundo e não contamos pra ninguém visto ser uma trabalheira sem fim. Aliás, você já percebeu que estou propositadamente preservando o seu anonimato aqui, por razões justas e apenas isso: Não é da conta de ninguém. De certa forma, também estou retornando o seu e-mail através deste manuseio, já que vidas movem vidas, virtualmente ou não. Assim, ficamos nos seguintes moldes: a carta é publicável, o remetente não. A menos que você tenha alguma objeção, então reescrevo tudo. Do contrário... Ah, não nos esqueçamos do negócio da oração.

A reunião dos salvadores do mundo ao invés de começar às 9:30 começou 20 pras 10, estavam a querida amiga Maria Inês, que ultimamente só pode salvar o mundo pela manhã, devido ao diabetes o problema de catarata se acentuou e de noite ela se sente como um morcego. O amigo Sérgio, as pessoas pensam que ela possa estar embriagado, por conta das aparências, Sérgio teve uns problemas, coisa de 15 anos atrás e ficaram algumas sequelas. Havia um sujeito que eu não sei o nome embora reservemos um pelo outro sincera simpatia que fica cristalina no aperto de mão e no sorriso. Temos também o Paulo, gente boa, que levou um tombo no Natal, o Leandro, batalhador, portador de uma história cavernosa ocorrida nesta madrugada com o vizinho - o vizinho levou uma facada por conta de levar para casa pessoas alopradas, fizeram uma algazarra danada, etc., a vizinhança ficou insone, o dia raiou para eles com ambulância na porta, enfim, o Leandro parecia abalado. Quem mais? Ah, o Nando, que vai ganhar um rebento daqui no máximo 60 dias e a mulher anda enlouquecida, o Milton, com seu jeitão inabalável, e o brother Lúcio, uma figura mui estimada. O Lúcio teve de subir as escadas com andador. Você vai dizer: lógico, ele está com 78 anos. Bom, não é bem assim. Até 3 meses atrás eu encontrava com ele na feira, ele subindo ladeira empurrando o carrinho sorrindo e eu morrendo descendo a ladeira com uma sacolinha. O que aconteceu foi que o Lúcio teve uma grande idéia 3 meses atrás - resolveu consertar não sei o que na caixa d'água sendo o fim desse reparo dois pontos: queda da escada, saída de casa com auxílio de bombeiros, operação de emergência, fratura de fêmur e pulso, diagnóstico de voltar a andar com os ossos solidificados em 2053. Não é que ele ficou bom? Nem os médicos acreditam.... Bem salvamos o mundo e fomos embora, cada um pro seu lado, eu tomei o bus na esquina, fiz uma parada em N.S. Aparecida para trocar de condução, cheguei em casa com os bofes de fora ao meio dia e a primeira coisa que fiz, depois de ter passado na portaria e reclamar o meu presente, foi abrir o envelope e contemplar a aquarela.

Praticamente entrei dentro dela. Tem um pedaço da minha vida ali, passado, foi uma contemplação em slides que saltavam no tempo e num relance fui pro futuro. Ah, aquele cachorro eu conheço, estou com o nome dele na ponta da língua. A porteira talvez não tenha sido batizada, mas também conheço. Ficava no interior paulista, enterrada bem no cerne da minha infância, em meio a terra vermelha, eucaliptos e figueiras.

É isso que se ganha em mandar aquarela para um farsesco escritor: delírios. No futuro pensei que bem poderia estar conduzindo a charrete e ao meu lado minha alma gêmea. Hei de encontrá-la. Os esotéricos adiantados nos mistérios informam que a alma gêmea quase sempre reside noutro planeta. Pra mim isso bem pode ser uma pegadinha, já que maioria das pessoas que eu conheço são de outro planeta, assim qual o problema em partilhar o ocaso da minha existência ao lado dela? Andando de charrete com um cão peregrino latindo e rodeado de árvores.

Como eu te disse em e-mail, parecia Natal. Meio dia e pouco, lá fora um calor brutal. Dentro da aquarela, frescor com orvalhos de início de primavera, quando primaveras eram primaveras. Tudo faz tempo. Franzi o cenho admirando os pormenores do seu talento sem fronteiras e sofri um misto de sentimento/pensamento de profunda gratidão por um dos presentes mais bonitos que recebi em toda a minha vida. Fiquei um pouco por lá cuidando de uns afazeres e voltei com um taxista que falava com muito carinho sobre o nosso prefeito.

Queria logo chegar neste pouso temporário para acessar o computador e avisa-la que os correios funcionaram a contendo. Horas depois você me mandou um e-mail e me falou sobre a oração. Então houve o tuim. Fiquei em transe e decidi, a despeito da temperatura sobrenatural, dar uma caminhada na praça. Olhava o céu com nuvens gordas e sentia no rosto um vento que mais parecia um chicote gracioso arrancando som da folhagem das árvores.

Voltei antes de escurecer. Minhas aventuras são pequenas, comprimidas, pulam da minha mente para o éter com a ajuda de minúsculo pára-quedas descendo vagarosamente para dentro da Terra que nos ampara. Depois voltam de novo, "num indo e vindo infinito".

Ganhei outro presente hoje, um livro de um amigo virtual, e assim como não tinha dúvidas da impecabilidade da sua aquarela sei que o livro dele possui brilho equivalente, a dedicatória termina com os dizeres: "um mergulho no que anseio e busco viver".

Maestros íntimos da batuta dedicam assim.

Bem, vou parando por aqui, do contrário essa missiva fica automaticamente inscrita no concurso de A Leitura Mais Enfadonha do Século.

Tecê-la nesta noite de domingo foi, não obstante, o gatilho para a oração que faltava, que precisava com urgência fazer e pela qual também agradeço, humildemente.

Acho que, prezada Aquarelista, são coisas assim que nos levam a dizer baixinho com absoluta convicção: Alegria, unidade, paz, pertencer.


Um grande abraço
Que Deus esteja sempre na sua vida


(Imagem: Dendrobium Wave King)


Bernard





 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 19/01/2015
Reeditado em 21/08/2020
Código do texto: T5106433
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.