Receita.
Sigo na palavra, à margem. Com meus parágrafos nunca escritos ou organizados. Meus silêncios sentenciados entre vírgulas e pontos. Todos os meus pensamentos sempre se misturam na batedeira de bolo. 110v, é claro. Aí de mim se fosse 220v! Misturo ovos e massa capilar por capricho de quem quer ficar careca de tanto sentir e pensar. Pensar, pra falar a verdade, na escrita, nunca pensei. Deixo os dedos correrem no teclado, embora muito antes a caneta já rabiscara muitas das minhas aflições ao meio. Tenho tudo escrito a punho, essa é a veredicta condição. Papéis e montoeiras de papéis. Estão todos aqui no meu pequeno bolso da camisa. Como de praxe, costurados no lado esquerdo. Já é bem notado pelos transeuntes que passam. Aquele bolso estufado, parecendo ser de gente séria, com contas à pagar, dinheiro ou qualquer outro papel que o torne tão sério. Mas não. São apenas minhas medíocres palavras. Não sei bem o “por quê” deles costurarem o bolso do lado esquerdo. Mas isso fica poético pra qualquer imbecil, metido à besta. Acrescento fermento no bolso. Quero que o que escrevo cresça quentinho no forno, rasgue a costura. Principalmente as de ângulo reto. Bato bem pra que a massa de papéis e palavras se dissolva rapidamente. Pronto. Consigo chegar em casa. Retiro com cuidado e reservo. Deixo descansar. Duas horas. É hora de passar pra outro recipiente e levar à geladeira pra firmar. Só então, depois de um dia, retiro a forma fria e sirvo em fatias. Sei que às vezes erro a mão. A pequenina variação dessa minha enfadonha receita. Ainda hei de tirá-la do cardápio de entrada, pra que possam se fartar de chantili e cereja, um dia, na sobremesa.