Carta ao Otto n°1
Meu filho, desde a mais terna infância, quando a memória se faz presente, papai sonhava contigo. No escuro dos meus sonhos você segurava minha mão e me chamava pra brincar. Seu sorriso eu já conhecia e ele sempre me dera um conforto apaziguador, uma calma budista. Tu sempre andaste comigo, eu sei. Já jogamos pedrinhas na lagoa e pulamos corda. Chutamos latas e brincamos na enxurrada. Lembro-me bem de nossas gargalhadas e gritarias pela casa, nossas correrias desenfreadas quando nos chamavam pra tomar sorvete. Sempre fora tudo tão doce, tudo tão azul. Mas agora, de fato, quero repetir todas essas nossas aventuras. Todas as nossas estripulias. Mas como já faz tempo, e papai anda um pouco velho, preciso ir com calma pra não me machucar. Papai, há tempos, tem tido uma só brincadeira. Que é a de se sentar numa cadeira e escrever. Parece chato, né? Mas é a brincadeira mais divertida que descobri nos últimos tempos. Nela podemos ser outros, podemos ser homem ou mulher, bandido ou mocinho, piratas, índios e xerifes. Podemos ser nós mesmos, mais do que nunca. Podemos chorar e gritar, rasgar o peito, podemos, até, engolir o mundo inteiro, ir à Lua, visitar outros planetas num foguete só nosso. Quando estiver maiorzinho irei te ensinar, prometo! Criaremos nossos barcos, nossas naves. Criaremos nossos cavalos alados, nossos gigantes pra nos protegermos dos perigos. Seremos, tu e eu, fortes guerreiros de batalhas. Confesso que estou ansioso pra chegada desse dia, porque essa minha brincadeira dá uma vontade danada de viver mais, de querer experimentar mais, e quanto mais nos entregamos, mais podemos brincar. Essa brincadeira, meu filhote, não acaba quando crescemos e ficamos tímidos e chatos. Nela podemos nos lançar até o infinito, sem medo de parecer feio ou idiota. Por que essa brincadeira vem de dentro, de nosso silêncio, do que somos.