Carta para um colega

Carta para um colega






Prezado colega,




Já vou começando logo de cara com o fator temporal, algo que sempre me fascinou nas mais variadas formas, do micro ao macro, dos tempos paralelos, das viagens no tempo. Ah, sim, darei voltas pra te responder e a única explicação lógica que eu tenho para isso é a ausência da mesma, coisas da escrita, quiçá, embora me pareça que nesse campo você sabe bem mais do que eu.

Enquanto habitantes da mesma nave, li outro dia serem necessários cerca de 200 milhões de anos da Terra para viajar ao redor do centro da galáxia uma vez. Isso significa uma REV. Existem sociedades e civilizações que estão em torno de três rotações REV.

Talvez esse dado seja um dos patamares do tempo em macro, artigo para reflexões abstratas em dias de chuva, inda que, na cidade de São Paulo, tem chovido muito pouco ultimamente.

Em tempo micro, estou com 54 anos. Faço 55 ano que vem, assim espera-se. Aqui no meu quadrado tudo é pela Graça de Deus, Nossa Senhora e seu Filho, mais alguns camaradas da Hoste, e volta e meia desconfio que eles, volta e meia, exclamam: minha nossa, como é tapado. Precisa de muito auxílio.

Mas vamos em frente, tola expressão posto ser a única direção, saudades eu tenho, dependendo do dia elas vem a cada 5 minutos, percebo dias em que a saudade passa em branco, e também sigo meu caminho agradecendo, mas confesso, já que estamos numa carta e cartas prestam-se a confissões tépidas, que faço uso do resmungo, e olhe que em alguns momentos sou um candidato potencial ao resmungão do século, muito embora boa parte das vezes - e contraditoriamente - resmungo de coração leve e por esporte.

Também sou pouco afeito aos homens de branco, aliás, tenho uma ótima piada de um conhecido, médico ele mesmo. O sujeito mal entra no consultório e o doutor está escrevendo uma receita. Então o sujeito protesta: poxa, eu nem cheguei e o sr. já está escrevendo a minha receita?! O médico responde: não, essa que estou escrevendo é para o próximo paciente. A sua está aqui na gaveta....

No meu documento consta 1,72, mas a ultima vez que estive no médico ele me disse: o sr. está encolhendo.

Bem, eu não luto contra o tempo, pelo contrário, vou me adaptando aos ciclos, palavra que com 50 anos estava muito mais em forma do que agora, se bem que, agora, estoicamente, heroicamente, penosamente (estou pensando em me dar uma medalha) pratico exercícios módicos 3 vezes por semana, descontando o que eu bato perna pra cima e pra baixo. Curioso, nesses momentos não reclamo. Quando moço pratiquei vários esportes de um modo que só não digo obsessivo pelo fato da imensa satisfação que sentia. Hoje toco violão nos intervalos propícios, pra mim mesmo, pois público algum em sã consciência conseguiria ouvir.

Ultimamente passei a lançar mão de pausas. Já fui mais irrequieto, no presente as pausas ajudam a próxima etapa imediata, talvez seja uma fase, meu avô também fazia pausas, a propósito foi um grande avô, tendo vivido uma vida plena até os 90.

Por hora, sem netos. Suspeito que esse quesito não dependa muito de mim. Aliás, essa percepção foi uma das grandes sacadas da idade: muito pouca coisa depende de mim.

Motocicletas nunca tive, mas entendo o background, como dizem os americanos. Se você me dissesse que saltava de pára-quedas eu não entenderia. Mas motos.... Nos anos de 1975 e 76 tive boas temporadas em cima de uma cinquentinha (Míni enduro?), saltando morretes e cobrindo distâncias em estradas de chão. Depois, nunca mais. Não era minha praia. Se tivesse insistido nisso estaria provavelmente no cemitério, e talvez meus filhos levassem meus netos lá, dizendo pesarosos: seu avô está aqui. (O que parece um grande equívoco, pois duvido muito que alguém ali esteja).

Essa semana aconteceram dois fatos que me chamaram a atenção, talvez em virtude do fator tempo. Eu vinha descendo a rua, recém saído da farmácia (pelo andar da carruagem ficarei sócio do farmacêutico) quando vi uma mulher sair em disparada, de braços abertos e colar num sujeito careca, já à espera dela, também de braços abertos. Ficaram praticamente grudados, imóveis, sem palavra alguma, somente abraçados, um abraço desprovido de qualquer outra conotação senão a desse abraço, que durou um longo tempo, parecendo mesmo que não ia acabar. Sabe o que aconteceu? Aquilo me emocionou deveras. Palavra de honra. Meu coração palpitou diante da cena.

E anteontem, como por obra do inexistente acaso, venho descendo outra rua e me deparo com um amigo de longa data, que não via praticamente desde a época das motocicletas, e conversa vai e vem ele me conta, em saber adquirido através do seu labor, notícias dir-se-iam sombrias sobre certos bastidores de nosso país. Findo o instante de perplexidade, ele vira para mim e diz: E dai? Quer saber? Nós tivemos uma boa vida....

Fiquei a pensar.

Enfim, é isso. Agradeço as suas palavras e faço questão de sublinhar o "carpe diem".

Talvez nada exista além disso.


Fraternal abraço,


Bernard
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 22/11/2014
Reeditado em 27/06/2020
Código do texto: T5044171
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