A Última Carta de Bened à sua amada Alia

Uma noite calma e morna se prolonga e eu precisei levantar-me pois os pensamentos se tornaram revoltos em minha mente. Quase não há vento. Está tudo tão quieto que posso ouvir as mandíbulas dos insetos a devorar folhas e madeiras. Se me apego ao travesseiro, posso também escutar o meu coração que bate compassado, porém forte.

Seria mentira, porém, se eu dissesse que esta noite me fez lembrar de ti. A noite não é o motivo da lembrança. Tu és. Não apenas desta noite, como de todas as outras desde que nossos olhos se encontraram e então se despediram. Teus olhos, Alia... Teus tímidos olhos. Se em nossa juventude eu os via com ternura, teimando contigo que eram os olhos mortos mais lindos que já vi, em minha fase adulta passei a vê-los como a tua chama imortal. Quantas e quantas vezes tu me despisses de toda ira com as labaredas dos teus olhos que me olhavam carentes, porém resolutos, e eu nada podia fazer além de conceder-lhe o que quisésseis.

Por que escondes os teus olhos? Ah, como queria vê-los mais uma vez. A chama ainda queima, Alia?

Desde que tu partistes perdi o pouco ânimo que me restava. Mas, ó, não! Não te preocupes! Não irei relembrar cousas que te possam fazer chorar de tristeza e culpa. Quero apenas que saibas as coisas boas que me deixaste. Umas delas são os livros, eu muito os amo. Estava revendo-os hoje pois, como disse, o ânimo me havia faltado e eu não toquei em nada deste quarto desde tua ida e os livros, portanto, ficaram empoleirados nas estantes, criando mofo e juntando a poeira que me causa tanto mal. Não tive coragem de tocar-lhes. Não sei o motivo. Mas hoje tive que dar um passo que me exigiu uma força de vontade absurda e finalmente iniciei as arrumações que me preocupavam.

Estou de mudança. Obrigado pelos livros.

Tu te lembras de quando me falavas sobre o destino? Que o nosso encontro era excelente demais para ser apenas um golpe da sorte? Eu te dizia que não, que não há coisa nesse mundo como o destino, que nós e apenas nós somos os responsáveis por nossos atos. Não sei se ainda pensas no destino, mas não penses mais. Eu sei que tu aprendestes muito comigo e poderás aprender mais isto, pois te será útil em sua nova jornada. Mas há algo que tu falavas, algo no qual creio ainda hoje: nosso encontro foi a mais pura materialização da paixão! Nossos momentos foram ternos, pelos céus, como os amo! Amo lembrar a minha mão sobre a tua, amo sentir a memória do cheiro dos teus cabelos esvoaçando sobre o meu rosto, amo e lembrança dos meus dedos magros acariciando tua face. Eu te disse, são coisas boas. Como eu queria que tu sorrisses ao ler estas palavras...

Estou me mudando, já disse? Estou feliz por deixar para trás todos estes fantasmas de lembranças tuas, ainda que nunca tenhas me visitado aqui. Estas paredes, contudo, são testemunhas do meu amor por ti! Elas, dissimulando inércia, viram-me chegar em casa com o mais sincero dos sorrisos, pois tinha te encontrado! Ouviram-me cantarolar, apaixonado, músicas que nos lembravam. Sentiram a minha dor em sua pele de tijolos quando, por ocasião de nossa despedida, lançava os meus punhos e minha cabeça com força em sua direção, compartilhando a minha dor fervilhante em seu cimento frio. Sei, contudo, que é inútil. Os fantasmas me seguirão. Ainda que eu queime tuas cartas, livros e presentes que me destes, todos estes fantasmas não saberão assombrar a ninguém mais além de mim, pois estas paredes ficarão e sussurrarão nossa história para uma nova família, mas não poderei esquecer-te: estás projetada em minha mente e não posso fugir de mim.

Já se passou tanto tempo, mas ainda sou o mesmo. O mesmo que tu deixastes. Me disseram que o tempo iria curar a dor, mas o tempo, este vil coveiro, apenas enterrou-a bem próximo a mim e algo, de tempos em tempos, suspira em meu ouvido para desenterrá-la. Fiz isto hoje, mas não falemos de dor. Falemos de tu. Ah, como eu queria saber como estás. Será que tu já amas alguém? Creio que sim, não ficarias presas ao passado como eu costumei fazer a vida inteira. Não quero mais fazê-lo. Será que tu o amas de verdade? Tu lembras que não admiti o meu amor nos primeiros encontros? Não sabia o que era. Não estava certo. Não queria te enganar, ainda que tu me olhasses com teus olhos nus, aqueles aos quais não resistiria. Apesar de sempre teres me visto como uma criança, eu sabia que o amor não era emoção momentânea, era a doce árvore da vida, plantada por nós e regada por aquele mesmo vil coveiro que enterrou a minha dor. Será por isso mesmo que o tempo, maldito, resolveu matar esta nossa árvore? Bem, ele não conseguiu. Ela está velha, carcomida e seca, mas se tu olhares bem de pertinho verás os pequenos rebentos verdes que me disseram que o amor não morre assim. Falo isto pois sei o que sinto. Não sei se tu sabes. Sabes? Céus, onde estás? Será que te entregaste para me esquecer, será que achas que esta paixão é amor? Olha para nossa árvore, Alia.

Da última vez que tive notícias tuas, já muito distante de mim, soube que estavas alegre. Te confesso a minha confusão de sentimentos. É agradável saber que estás bem, mas ainda sinto uma ponta de tristeza por não fazer parte desta felicidade. É possível que, numa das minhas andanças pelas terras que já foram minha pátria, tenha te visto e tu me viste, mas, tomada por medo ou qualquer outra coisa, tenhas me ignorado. Não te culpo, mas ah, como queria ouvir tua voz novamente, pequena Alia! Quantas lembranças boas isto não suscitaria! Ouviria tua voz e viajaria para algum lugar em nosso passado quando, embriagada de prazer, repetias que me amava e que tu serias minha para sempre.

Esbarrei no tinteiro e manchei o chão. Estou ficando velho, pequena. Velho e ranzinza. O amor jamais bateu à minha porta novamente e até te confesso que o procurei alucinadamente em muitos colos que não o teu. Quando tu foste embora e deixaste os meus sonhos fragmentados pelo chão, achei que não mais me ergueria. Mas olhe para mim, olha o que tenho feito. Tu não acreditarias em mim. Aliás, foi por isto que terminamos. Tu simplesmente tornou-se resoluta em ver o meu futuro baseada em meu pensamento caótico e que sempre parece não querer levar a lugar algum. Achaste mesmo que eu não te levaria a lugar algum. Novamente, não te culpo. Sequer abandonei esta forma peculiar de lidar com a vida. Mas trocaria, Alia, tudo... tudo apenas para te ter em meus braços, tu sendo minha e eu sendo teu.

Sequer sei se receberás esta carta. Todas as circunstâncias dizem que não. Mas, se por algum infortúnio ou bem-aventurança chegares a lê-la, ouve-me uma vez mais. Confia em ti e mais ninguém. Analisa tudo. Saiba o terreno em que está pisando, assim como outrora fiz contigo. Não creio que errei, não posso me arrepender de tudo, a não ser de não ter como te dar melhor conforto. Não creio que meu julgamento foi errado: tive a certeza de que este seria o grande amor de minha vida. Tu partiu, não és mais minha. Mas ainda és o grande amor da minha vida. Estou ficando velho, mas não morrerei agora e sei que ainda poderei ter alguém. Alguém que goste de mim e que cuidemos um do outro. Alguém que ignore o fato de que estou completamente despedaçado para sempre (ou que talvez saiba disso muito bem). Mas tu, Alia... tu sempre serás o grande amor de minha vida. Mas e a quanto a mim? Fui apenas um degrau para ti?

A tua última carta que te enviei e pedi uma nova chance, me dissestes que era chantagem emocional. Não é assim que vejo. Eu apenas abri meu coração, como tu me ensinou. Lembras? Algo que não esquecerei, pois me ensinastes a conhecer os meus próprios sentimentos. Pois bem, abri-me para ti. Não me julgue por isso. É o que estou fazendo novamente. Abrindo-me. Mas não te preocupes. Sei da escolha que fizestes, espero que seja o melhor para ti. É irônico pensar que eu que sempre fui duro qual pedra agora escrevo uma carta que nunca será lida apenas por lembrar de ti e tu que parecias frágil qual espuma tornou-se rígida. Ao menos para mim.

Pequena Alia, perdoa-me o tempo que tomei (se leres). Perdoa se causei algum mal ao relembrar-te tantas coisas. Reserva um espaço em teu coração para mim e lembra de mim e de todas as coisas boas que te fiz. Sei que não irás querer, mas ainda sou teu amigo e desejo o teu bem acima de tudo, portanto, se precisares, chama-me e estarei contente em te ajudar. E perdoa-me se esta carta chegar a ti. Se chegar, quebrei a promessa de desaparecer da tua vida. Mas não pude evitar.

A noite continua morna e vai demorar mais que as outras.

*Para sempre seu, Bened.

*Esta parte final estava rasurada. É, portanto, o desfecho possível, reconstruído a partir do sentido original das palavras que a leitura foi possível.

Áquila Teófilo
Enviado por Áquila Teófilo em 06/11/2014
Reeditado em 06/11/2014
Código do texto: T5025094
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