Dear Chico

Buscando sentido em minhas reflexões, parei para ouvir tuas obras. Eu que sempre me gabei por nunca ter caído em tuas cantadas, nunca ter me curvado às tuas melodias e jamais ter dito lhe amar. Usando de bom senso, deixei-me levar pelos teus acordes e explorei teus discos.

Então, queria explicar que não é nada pessoal, querido, eu apenas não quero ser mais uma das muitas Chicolatras que existem. Sei que nunca disse que conhecia a "alma feminina", como dizem por ai. Pelo contrário, quem questiona é o eu-lírico ou eu-poemático. Nem todo mundo entende o seu sarcasmo de Mulheres de Atenas, Canção Desnaturada ou até mesmo Hino de Duran (em relação à opressão policial) ou Sobre todas as coisas (uma das poucas músicas ateias da época). Mesmo te entendendo por completo, não te amo. Aceite.

Deve estar achando que generalizei sua obra e ouvi só as músicas que serviriam ao meu propósito - Não me apaixonar - e tivesse deixado passar clássicos como: a mulher de "Folhetim" ("Mas na manhã seguinte, não conta até vinte, te afasta de mim: que já não vales nada, és página virada, descartada do meu folhetim"), de "Essa moça está diferente", de "Rita" ("A rita levou meu sorriso no sorriso dela), de "Teresinha", de "Deixe a menina", de "Ela faz cinema", de "As vitrines", de "A Rosa" ("a santa ás vezes troca o meu nome e some"), de "Sob medida" ("sou bandida, sou solta na vida"), de "Palavra de mulher", enfim, poderia citar mais cem músicas em que a imagem da mulher é completamente o oposto da ótica feminista em que eu te enquadrava. Tendenciosa sim, às vezes. Nem assim me apaixonei.

Minha análise antropológica é coerente, mas sei que do ponto de vista de uma historiografia musical, requer muita atenção aos anacronismos. Sei que a revolução feminina estava apenas dando seus primeiros passos na sociedade brasileira, o que, consequentemente, você mostrou em suas mulheres. São muitas, de diferentes estratos, profissões, sentimentos, situações e, claro, tem a submissa e a trabalhadora e a louca e a que espera, a maltratada... Elas são realidades também, que pelo fato de você não viver nelas, não quer dizer que não existam. O universo feminino é muito amplo e nem em toda a obra você consegue retratá-lo, mas você o tenta fazer com muita sutileza, com muita ironia e beleza, coisas que boa parte da nova geração não enxerga. Nem com isso me apaixonei.

Entendo e "aprecio" todas suas obras. “Os saltimbancos”, sendo esta minha preferida, em que uma das personagens femininas a gata, é livre e completamente questionadora de qualquer sistema, ressaltando que na peça original italiana que também é uma versão de uma peça do Brecht são quatro amigos machos : galo, gato, cachorro e jumento. Que tu transformaste dois deles em meninas.

Mesmo depois, de toda essa analise à suas canções, não me apaixonei... Talvez falte-me sensibilidade para entender tuas estrelinhas, talvez não tenha nascido para o amor ou eu não goste mesmo de você. E não me faça sentir uma criminosa por não te amar, não sou menos mulher entre as mulheres que te amam. E pra ser sincera, sou feliz por não te amar, não nego minha admiração por toda sua historia, mas meu amor, Chico, esse tu nunca terás. Desista de mim, você tem todas as outras ...

E aprenda, querido: nem toda mulher cabe em Chico. O feminino é muito maior.

Daniele Novais
Enviado por Daniele Novais em 19/10/2014
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