Carta 3 - Marcel (25/08/2014)

Querido Marcel,

Ando ouvindo muito Lana e fumando mais cigarros do que eu deveria, por isso estou com uma tosse e uma raiva que não passam nunca. Meu querido amigo, você sabe como é inédito esse sentimento que tem me consumido, mas me explique você o porquê de tudo isso. Sei que você já odiou o mundo e tudo o mais e digamos, aliás, mais do que qualquer ser que tocou essa terra e agora, veja, você mesmo se transfigurou magicamente em um raio vermelho e flamejante, o próprio fogo, poderoso e certeiro, e, pelos deuses, como és maravilhoso!

Sabe aquelas tardes frias em que sentávamos conversando como o absurdo da vida nos consumia em dor e prazer, achando nossas vidas tão estranhas nesse amontoado de gente cinza e nada mais que cinza, na verdade tudo tão absolutamente cinza que me nauseava imperceptivelmente... queria voltar naqueles tempos, acender um cigarro, beber um gole do meu café bem quente e te beijar a boca querendo na verdade te beijar inteiro, completamente, com todas minhas forças, querendo quem sabe com isso talvez desperadamente beijar tua alma, agarrá-la com minhas mãos geladas e dizer secretamente, de espírito para espírito, que, deus, tu eras belo, tu eras magnífico e nada em ti era minimamente cinza ou entediante! Devia ter feito isso antes ou depois de você me contar mais uma das suas histórias tão ordinariamente singelas que meu coração traduzia para mim um, sei lá, algo como que tuas palavras eram como rosas, belas e cheias de espinhos e então, depois do café terminado e o cinzeiro cheio, eu me levantava e ia andando pelas ruas sujas do centro assim, rasgado por dentro, cheio de arranhões e, ainda sim, plenamente, euforicamente feliz por ter visto todo aquele jardim.

Tenho esse amor sincero por ti e por alguns de meus amigos, do mais, o resto do mundo tem me causado uma náusea digamos que entediante e acinzentada, e tão entediante e acinzentada a ponto de me deixar irado e, me conhecendo como me conheces, sabes que não sei lidar com o ódio porque nunca o senti. Por isso agora sento aqui, isolado, como se tivesse passado por um tratamento Ludovico, aterrorizado e, portanto, terrivelmente só, para te escrever e tentar remontar, mesmo que em uma imagem mental, aqueles tempos em que sentávamos juntos depois do almoço. Talvez esse seja o único jeito de confessar minha alma, como um devoto-ser-dos-subúrbios e confesso para ti e para ti somente porque sei que somente tu, as prostitutas e os velhos e talvez Jack Kerouac me compreenderiam. Sinto-me incapaz de amar, mesmo amando exageradamente todos e todas as coisas, sinto-me inteiramente incapaz de amar. Ando indisposto a tal ponto com a humanidade que tenho vontade de, todas as manhãs, ir até a padaria bem cedo buscar o pão da primeira fornada do dia só para olhar profundamente para o padeiro e ele então saber, no fundo de si, mesmo que ele mesmo desconheça isso, e sem trocar uma palavra sequer, que existe algo terrivelmente errado com o mundo. E com isso, a vida para ele não poderá jamais ser a mesma, virá a insônia e, quando ele finalmente adormecer, já será hora de levantar e sua indisposição o levará a um caminho sem volta de atraso cada vez maior nas fornadas dos pães e, assim, veja, sua vida estará arruinada em pouco tempo. E, depois da padaria, eu passaria na velha banca da esquina para comprar o jornal e, quando o dono da banca me desse bom dia, eu não responderia, e quando ele perguntasse sobre o resultado do jogo de ontem, eu diria que não gosto de futebol e, assim, ele passaria o resto do dia, da semana, dos anos pensando como a única diversão de sua vida, depois que sua mulher o deixou após anos sem conseguir ter filhos e com a morte de sua mãe no início de maio, o que o deixou terrivelmente só, era inútil e sua vida era um fracasso, e ele morreria triste e só.

Mas talvez tudo isso seja apenas um ódio de mim mesmo e dessa incapacidade de ser simples, de ter um trabalho, uma esposa e filhos, e amar incondicionalmente alguém de verdade. Mas sou terrivelmente incapaz de amar. Talvez eu esteja de fato em busca da dor e da loucura, como uma busca mesmo que incrédula por fugir de tudo que é entediante e cinza, mas às vezes eu penso que talvez todos sejam assim, como nós, e o fato de se ocuparem com tarefas vazias é apenas a maneira mais prática de fugir dessas questões metafísicas completamente toscas e inúteis e, em vez de se tornarem um Camus, um Mozart, um Rembrandt ou talvez Alvares de Azevedo, preferem apenas tomar a cada manhã um comprimido de antidepressivo e ir para o trabalho.

Crê, Marcel, que até a natureza me irrita, me parece de mármore, artificial. As estátuas e os bancos das praças me exalam mais vivacidade do que qualquer árvore. Tenho tentado extrair significados de coisas sem poesia alguma e isso tem me parecido muito mais digno do que escrever sobre musas ou sentimentos bucólicos. Tenho mais vontade de transar com os canos do esgoto do que com a bela mulher virgem dos romances. Parei forçosamente de beber e sou incapaz de amar. Outro dia me irritei profundamente e quase me desiludi para sempre com a humanidade ao conhecer um garoto dois anos mais jovem que eu que simplesmente nada sabia da vida além dos valores hipócritas e rasos que seus pais o haviam ensinado e que seus amigos compartilhavam. É claro que seu sonho era mudar o mundo – de quem não é - mas pude ver, pelo jeito que ele andava e falava, que a vida o levaria de opiniões conservadoras a uma busca ambiciosa por poder e dinheiro, e eu sabia que ele jamais seria capaz de, sozinho, pensar profundamente seja lá sobre o que for, sempre teria respostas prontas, rápidas e treinadas, nunca uma opinião crítica ou uma real reflexão, e jamais abriria um livro de filosofia ou de sociologia nem se emocionaria com a arte ou com os noticiários – não que isso seja, de fato, necessário, mas ajudaria.

Mas, olhe, nesses mesmos dias eu conheci uma menina que tem o sonho de trabalhar em uma loja de óticas e isso me abalou profundamente... o quão semelhante e distante está ela de mim e de ti, tu me entendes? Todos os dias ela acorda cedo, pega o ônibus lotado para ir trabalhar em uma pequena ótica da Andradas, vendendo óculos e lentes até a noite, para então pegar o mesmo ônibus lotado para voltar para casa e me contar, humilde e verdadeira, sobre o seu dia e de como ela é apaixonada pelo seu trabalho e como espera, um dia, se tornar gerente da loja. De repente senti todo o mundo mudado novamente, como se aquela fosse a existência mais simples e maravilhosa e ao mesmo tempo misteriosa e de infinitas nuances, como se ela estivesse tão mergulhada na vida que fosse, de alguma forma, uma própria metáfora da vida manifesta para mim, como uma profecia, alguma coisa que o destino colocou ali, no meu caminho, e que me era incompreensível e desconhecido e tudo que eu queria é compreender e conhecer, mas não podia porque eu sou apenas eu e aquela era uma existência absoluta.

Parece fazer pleno sentido, você me entende? Você me entende, Marcel? Deixarei que você reflita um pouco, sei que me compreenderás, estou certo disso. Somos catalisadores da vida. De repente, agora e assim, não me sinto mais obrigado e segurar a caneta e pedir por ajuda.

Obrigado por tudo,

Teu de coração, nem mais, nem menos que isso,

D.C.