DÉCADAS DEPOIS... - (Carta Aberta)



 
          Esta que vos fala nunca foi de marcar território... Prefiro perder todas as corridas, como desde sempre  acabei por perdê-las, todas, ao longo da vida (vós o sabeis, vós, a parte antiga, a parte ancestral das histórias) visto que, em verdade, eu me tenho sido, sempre, a  única, a mais perigosa de todas as rivais. Dizer-vos isso décadas depois... Nunca, mesmo, me soubestes nem  me quisestes, realmente, saber... Agora eu o sei, e com que dor... com que dor o sei... eu, que sempre me vi e quis ser vista como uma igual...  uma igual... Nem inferior nem superior: uma igual... Santa, tristíssima, para sempre perdida ilusão, acompanhada, ademais, tal perda de ilusão, tal perda de utopia amorosa (e não apenas no território amoroso), pela compreensão do quanto boa parte, melhor dizendo, do quanto a grande maioria de mulheres e de homens não me pode, efetivamente, saber. Eu devia ter compreendido isso tudo há quatro décadas (!!!) quando, tão tenra ainda, ainda tão tenra, já me dera conta de que não havia nascido para marcar território, nem para competir. Eu sempre tentei, apenas, existir; eu sempre tentei, apenas, ser: nada mais. Eu não podia saber que querer apenas existir, que querer apenas ser, acabaria por se revelar fonte de tanto mal e de tamanha solidão. Eu devia ter pressuposto que só poderia ser assim, em um mundo em que a necessidade do ter impera sobre tudo  e sobre quase todos. Escrever tais coisas me traz o desejo de saudar a quem foi, no imediato dos dias, meu companheiro, por mais de 15  anos; saudar a pessoa de impossível volta para nós dois, saudar a pessoa que tem pautado a vida pela procura de ser, a pessoa que, no território do ter, tem sempre tão pouco... Ave, ser para meu eterno respeito e admiração. Não posso voltar para ti e tu o sabes, tu o sabes bem. Fez-se  tudo demasiado tarde.
      Seja como for, fui também aprendendo, no decorrer das décadas, que quem passa a vida a marcar território acaba ficando, apenas, com o simulacro do ter.   Fui aprendendo, nessas quatro décadas da vida, décadas a valer por milênios de perda,  por milênios de desencantamento, não apenas no território do amor entre dois seres. Não apenas.