CARTA ABERTA



                       SE QUISERES COMPREENDER...



 
     Após tanta vida de temporais, visíveis, invisíveis; após tanta renúncia e tanto "teatro do absurdo" em que nós, protagonistas-vítimas-algozes..; após tanta transcendência, tanto voo e tanto naufrágio; após tanta traição de cada um a si mesmo e de cada um ao outro; após tantos esconderijos  e subterfúgios; após tanto silêncio partilhado e tanto silêncio inalcançável; após tanto rosto em mim da minha "culpa" por ti a mim atribuída, parece-me que de "devedora" passo, enfim, à condição de "credora". Abdico, por princípio, de tal condição; prefiro usar para ela, para tal condição, a expressão "caminho em direção a liberdade". Se puderes compreender, enfim, o verdadeiro e mais fundo sentido do meu afeto por ti e da minha fidelidade a ti, sinto que minha vida estará metade ganha. Sei que tal afirmação me expõe a que me chamem de messiânica. Eu diria que é meu compromisso com o teu destino, compromisso  levado ao seu próprio limite.
     Já a outra metade da vida a ganhar-me é, ainda, dado deveras obscuro, para além do meu papel com minha mãe, para além do que isso me representa. Ainda não vejo claro, nem um pouco claro, esse algo vital de mim e para mim, a redescobrir. A me redescobrir. Há o corpo já a caminho da velhice, segundo o que se estabelece como o tempo de início da velhice (sem eufemismos, que estes não me cabem). Há o tempo com sua terrível premência,  o tempo de tentar salvar o possível e passível de alguma ainda realização pessoal, o tempo de ainda tentar poder ser útil, no que eu seja e tenha de melhor a dar, a mim  e aos outros,  para além dos muros e dos limites do lar.
     Algum amor tardio, ainda? Algum corpo para amor, ainda? Não o sei, Amigo; nada sei. Sei do meu compromisso vital com alguns seres  neste mundo, essencialmente do meu compromisso com o teu destino e com o de minha mãe; resta que eu assuma a minha responsabilidade inalienável - antes que seja tarde demais - com o meu próprio destino, que não pode e nem deve se confundir com o teu destino e com o destino de minha mãe, que também tenho, comigo mesma, minha parte a resgatar, minha tarefa a cumprir. Antes que tudo se faça tarde demais.