UMA CARTA EM DEFESA DA VIDA E DA PAZ

Ao Professor Carlos Ribeiro de Sousa – Carta conclusiva.

Caríssimo Carlos Ribeiro de Sousa (amigo Carlos Reis): começo esta carta afirmando com o filósofo Sêneca que “nada do que é humano me é estranho”, mas ainda insisto em pensar que tu talvez estejas querendo testar a autenticidade da minha postura em defesa incondicional do amor, amor universal. Esta é apenas uma das possibilidades, das interpretações possíveis. Assevero que todo filósofo ou simpatizante da filosofia deve ter muito cuidado com certas teorias e posições filosóficas. O alemão Hegel nunca foi e jamais será um bom exemplo de pensador para a fundamentação teórica das nossas posições e atuações sociais ou políticas. Ora, vários filósofos se opuseram severamente à filosofia desse pensador alemão, incluindo discípulos desse homem pensante.

És cônscio dos neo-hegelianos de direita e de esquerda. Feuerbach, por exemplo, chamou o idealismo de Hegel de “especulação vazia”, visto que, segundo Feuerbach, Hegel não trata do ser real, nem dos indivíduos concretos. O filósofo Schopenhauer chamou Hegel de “charlatão”, de “acadêmico mercenário”. Ora, Hegel elaborou uma filosofia de acordo com os interesses do Estado prussiano. A filosofia hegeliana serviu e serve para legitimar todos os governos, inclusive os mais injustos e cruéis. É isso o que tu queres ao usar Hegel para fundamentar a tua apologia do ódio? Sabes muito bem que, segundo Hegel, todos os conflitos, todas as guerras, todas as dominações, todas as injustiças fazem parte do desdobramento da história. Tudo isso, segundo ele, no fim, é bom. Que absurdo!

Sendo assim, como tu podes fazer oposição a algum governo? Como podes te opor à corrupção? Ora, se, conforme Hegel, tudo serve para o desdobramento da história, até a corrupção pode ser justificada. Desse modo, as tuas críticas a qualquer corrupção não se sustentam. Ainda que eu não seja um conselheiro, nem queira sê-lo, pois sou um homem imperfeito, aconselho-te isto: se quiseres te opor às injustiças e à corrupção no Brasil, tu não podes usar Hegel para fundamentar os teus discursos, a tua postura social e política. Se usares Hegel, serás injusto e contraditório. Eu sei que és um homem justo e amante do raciocínio coerente, lógico e verdadeiro.

Ah... o próprio Marx fez severas críticas a Hegel! Disse que, “substancialmente, a filosofia de Hegel interpreta o mundo de cabeça para baixo: é ideologia”. Sobre Marx propriamente, devemos convir que ele deixou muitas falhas. O pensamento social e político de Karl Marx está ultrapassado. A sua teoria a respeito da divisão das classes em dois grupos não serve para analisar o complexo momento atual. A teoria dele serviu para legitimar injustiças também. Tu sabes disso. No entanto, ele nos deixou ótimas contribuições, principalmente quando defende que “através do trabalho o homem humaniza a si mesmo e à natureza”.

Portanto, caríssimo Professor, a tua inserção de Hegel e Marx na apologia ao ódio é adequada e, ao mesmo tempo, contraditória.

Muito cuidado com as teorias filosóficas! Há filosofias que nos ajudam a fazer a guerra e filosofias que nos levam a promover a paz. Hitler, por exemplo, foi um carrasco que se apoiou na filosofia de Nietzsche.

A respeito do amor aos inimigos, é mister salientar o ensinamento de Jesus Cristo. Eu não posso prescindir das outras áreas e campos do saber e da vida humana, pois todo pensador deve olhar o todo, e não ver apenas uma parte da realidade. Sendo assim, posso usar num argumento filosófico tudo o que é necessário e tem “bases sólidas”, como diria Descartes, iniciador da filosofia moderna. Além disso, dizem os estudiosos da vida humana que todo homem é naturalmente um ser religioso, ainda que não assuma ou não reconheça essa condição. Ademais, houve e há muitos bons pensadores cristãos que fizeram e fazem muito bom uso da filosofia.

Jesus, portanto, disse: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo!’ Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês!... Pois, se vocês amam somente aqueles que os amam, que recompensa vocês terão? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se vocês cumprimentam somente seus irmãos, o que é que vocês fazem de extraordinário?” (Mateus 5, 43-44 e 46-47)

Amar não significa compactuar com as injustiças. Jesus amou a todos, comeu com fariseus e doutores da lei, mas nunca aceitou os erros deles. Jesus condenava as ações erradas, mas abraçava as pessoas. Ele lutou contra o ódio, contra as injustiças. Foi radical quando houve a necessidade. Em Mateus 23, tu podes confirmar a radicalidade de Jesus, mas nunca agiu com ódio; sempre agiu com amor. Por outro lado, Jesus foi “manso e humilde de coração”. É com Ele, principalmente, que eu desejo aprender.

O ódio só consegue gerar ódio. “Uma árvore má só pode produzir frutos maus”, conforme disse Jesus. Entre muitos outros bons ensinamentos, Buda deixou este para a humanidade: “O fogo da ira consome aqueles que perderam as mentes no ódio”. Para Gandhi, “só podemos vencer o adversário com o amor, nunca com o ódio”. E mais: “O mundo está cansado de ódio”. Completou: “Creio que sou incapaz de odiar”. O filósofo Sêneca deixou registrado: “A natureza nos produz como irmãos... É coisa mais mísera ofender que ser ofendido. A natureza nos ordena que nossas mãos estejam sempre prontas a fazer o bem”. Sêneca nos convida a optar pela fraternidade e pelo amor. O filósofo Voltaire nos convida a olhar todos como irmãos. Sim, Voltaire. Quem quiser conferir, basta ler o “Tratado Sobre a Tolerância”, deste pensador.

A Psicologia afirma que uma pessoa violenta pode transformar essa violência em amor, em boa energia. Vê: transformar. O apóstolo Paulo era um homem forte, decidido. A sua força, antes da conversão, era usada para o mal. Após se converter, ele direcionou essa força para o bem. Depois da conversão, ele não agia com maldade, com ódio, mas com amor e por amor.

O ódio não precisa mais de defensores. Pensar que o ódio é importante não é nada original. Ora, desde os primórdios da humanidade, a maioria dos seres humanos vive alimentada pelo ódio. O pensador Thomas Hobbes dizia que, “no estado de natureza, o que predomina é a guerra de todos contra todos”. Kant fala sobre a maldade do homem no estado natural, sobre o egoísmo. Por isso, o homem precisa da lei do dever.

O ódio não é importante, ainda que ele seja algo presente na maioria dos seres humanos. O ódio não tem limite, assim como, segundo Santo Agostinho, “a medida do amor é amar sem medida”. Não existe a possibilidade de usar o ódio para o bem. O que pode ser feito é amar, e não deixar que o ódio seja o alimento da nossa vida e das nossas lutas.

O poeta Cruz e Sousa escreveu: “Ódio são! ódio bom! sê meu escudo/ Contra os vilões do Amor, que infamam tudo,/Das sete torres dos mortais pecados!”

Aparentemente, eu estou me contradizendo. No entanto, eu fiz essa citação para dizer que não existe ódio são, ódio bom. Em si mesmo, todo ódio é mau. O poeta catarinense estava errado sobre isso. Quem tem ódio, psicologicamente está prejudicando a si mesmo. Vamos imaginar: alguém tem ódio por outra pessoa. Aquela pessoa talvez nem saiba da existência desse alguém que lhe odeia. A pessoa odiada está bem, enquanto quem odeia está se corroendo por dentro. Que desastre pessoal!

O ódio não precisa mais de defensores. Ele se encontra em todos os ambientes sociais, políticos e religiosos. Ele se encontra em muitas famílias. As guerras não param. No mundo inteiro, o ódio se apodera das pessoas. No Brasil, por exemplo, todas as classes sociais são vítimas e autoras do ódio. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração Universal dos Direitos Humanos não conseguiram frear o ódio entre os seres humanos. Não conseguiram convencer as pessoas do direito que cada ser humano tem de viver com paz e dignidade.

Vou mais longe: ninguém precisa de educação para odiar ninguém. Ninguém precisa de professor para sentir ódio por outra pessoa. Não precisa ser instruído para ter, por exemplo, xenofobia (ódio a pessoas ou coisas estrangeiras). Ninguém precisa ser bem-educado para ser invejoso. A inveja é um desdobramento do ódio. Aliás, a pessoa bem-educada não tem inveja de ninguém. O ódio se espalha, pois, sem nenhum esforço. O amor, no entanto, exige que nos tornemos gente.

O homem deve evoluir integralmente. Somente o amor pode resgatar os seres humanos da estupidez e da autodestruição. O amor deve estar presente em todas as atitudes e atividades do homem e da mulher. Eis um grande desafio!

Eu não vim a este mundo para odiar. Eu me amo. Eu sou filho do Amor. Eu vivo para amar e amo para viver. É o amor que me alimenta psicológica, espiritual e intelectualmente. Somente quem ama pode compreender o amor. Ninguém mais.

O amor foi vivido e defendido por Jesus Cristo, Buda, Gandhi, Sócrates, Nossa Senhora, São Francisco de Assis, Voltaire, Nelson Mandela, Santo Agostinho, Sêneca, entre muitos outros. Eu sigo os ensinamentos desses homens. Jesus, além de Homem, é Deus. Nele eu ponho a minha confiança!

Não há nenhum registro de que o ódio tenha conquistado algum bem no mundo. Quem praticou o bem viveu no amor. Ódio e bem não combinam. Lembras o caso de Jean Calas? Lembras Auschwitz? Este nunca mais! Nem contra os políticos corruptos. É o que os homens de bem afirmam. Somos seres pensantes. As nossas armas devem vir da inteligência e do amor; não da estupidez, do ódio.

Eu prefiro continuar sonhando com o amor universal a viver me destruindo com o ódio. O ódio prejudica muito mais a quem o alimenta do que a pessoa odiada. Isso é Psicologia. Isso é religião. Isso é Filosofia do bem. Eu busco conhecimentos que me levem a uma evolução integral. Lamento por aqueles que se limitam a algumas noções parciais sobre a vida.

Eu fiz uma opção consciente pelo amor. O amor que eu vivo é bom, em primeiro lugar, para mim mesmo. Não compactuo com injustiças. Sou um homem em busca da verdade com amor. Eu já fui objeto e vítima do ódio de um padre, quando eu morei em São Luís/MA. Eu não gostei do semblante do ódio. Eu nunca vi Deus no ódio. Prefiro o amor maduro e consciente, atuante, forte, terno, amável, construtor da paz. “Felizes os que promovem a paz”, disse o Mestre dos mestres.

Caríssimo Prof. Carlos Reis, tu és livre para amar e odiar. A escolha é tua. Novamente, eu sugiro que leias o livro “O Coração do Homem”, do psicanalista Erich Fromm. É um livro que trata da liberdade de escolher entre o bem e o mal, o amor e o ódio, a vida e a morte, e o uso que cada indivíduo faz dessa liberdade. O livro fala a respeito do amor à morte e do amor à vida presente nas pessoas. Fala sobre os carrascos. É bom conhecer o perfil de um carrasco.

Podes escrever livros e/ou tratados sobre o ódio. A decisão é tua. Sê livre! Eu, porém, jamais desejarei viver abastecido por ódio. Odiar não faz parte do meu projeto de vida. Os homens maus deste mundo não me farão desistir do amor e da prática do bem. A maldade deste mundo não me fará desistir do amor e da vida. Ódio e bem não se conciliam. Odiar não é um meio para se conseguir um bom fim. Já esqueceste que os fins não justificam os meios? Será que já defendes o inverso? Vejo que estás defendendo que “os fins justificam os meios”. Lamento!

Tu falas a respeito de sabedoria. Eu te digo que não há sabedoria em quem odeia. Somente com amor é que pode haver sabedoria. Na própria palavra filosofia já existe o sentido de amor. Já esqueceste? Não é ódio; é amor.

Não vou continuar falando de ódio. Quem fala muito sobre algo acaba gostando e introduzindo isso na própria vida. Eu quero continuar falando a respeito do amor. Aristóteles discorreu sobre a importância do hábito para a conquista e o exercício da virtude. Ele dizia que, “primeiro, fazemos os hábitos. Depois, os hábitos nos fazem”. Sendo assim, quem fala muito a respeito do ódio acaba gostando de odiar. O que eu quero é amar. Será bom para mim mesmo. Amar é um ato de quem deseja viver bem. Não importa se os outros amam ou não. Eu faço a minha parte.

Estou em outra fase da minha vida. Não vou continuar numa discussão infrutífera. Amor e ódio não podem conviver bem. Já respondi aos questionamentos. Já mostrei a minha postura. Já conheço a tua. Não quero convencer ninguém, nem serei demovido da minha vida em conformidade com o amor. Continuaremos amigos. É só isso. Tu podes escrever o que quiseres, meu amigo. O amor não é propriedade minha. Por isso, não há razão para eu querer convencer ninguém. Saí da fase em que eu buscava convencer. Geralmente, quem deseja convencer não deseja o encontro com a verdade.

Concluo esta carta, relacionando a minha postura diante da tua, com um caso que ocorreu entre os pensadores Rousseau e Voltaire. Certa vez, após receber o livro “Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”, enviado pelo próprio autor (Rousseau), o filósofo Voltaire afirmou: “Acabei de receber seu último livro contra a espécie humana, e agradeço. Ninguém foi tão refinado quanto o senhor na tentativa de reconverter-nos em brutos. A leitura de seu livro produz o desejo de voltar a ficar de quatro. Como, entretanto, faz uns sessenta anos que deixei de exercer tal prática, sinto que é impossível, para mim, voltar a ela”. (Voltaire: vida e pensamentos. Editora Martin Claret, 2001)

Porém, quando as autoridades suíças queimaram o livro de Rousseau, Voltaire defendeu-o, lançando este princípio: “Não concordo com nada do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizeres o que pensas”. (Idem)

É isso o que eu faço (com muito respeito, como pensador e ser humano convicto da prática do amor e do bem) em relação às tuas ideias absurdas em defesa do ódio. Podes continuar sendo apologista do ódio. Respeitar-te-ei, como devo respeitar todos os seres humanos.

Concluo, portanto, com o poeta Augusto dos Anjos (em seu poema A Caridade):

A Caridade

(Augusto dos Anjos)

“No universo a caridade

Em contraste ao vicio infando

É como um astro brilhando

Sobre a dor da humanidade!

Nos mais sombrios horrores

Por entre a mágoa nefasta

A caridade se arrasta

Toda coberta de flores!

Semeadora de carinhos

Ela abre todas as portas

E no horror das horas mortas

Vem beijar os pobrezinhos.

Torna as tormentas mais calmas

Ouve o soluço do mundo

E dentro do amor profundo

Abrange todas as almas.

O céu de estrelas se veste

Em fluidos de misticismo

Vibra no nosso organismo

Um sentimento celeste.

A alegria mais acesa

Nossas cabeças invade...

Glória, pois, à Caridade

No seio da Natureza!

Estribilho

Cantemos todos os anos

Na festa da Caridade

A solidariedade

Dos sentimentos humanos.”

“Pondus meum amor meus.” (Santo Agostinho)

“Ama, et fac quod vis.” (Santo Agostinho)

Domingos Ivan Barbosa
Enviado por Domingos Ivan Barbosa em 31/07/2014
Reeditado em 31/07/2014
Código do texto: T4904162
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