Excerto de uma carta a Caio Fernando Abreu
Eu não sei ser de outro jeito, mas quando estava dizendo isso a ela houve um desentendimento. Quando fico nervoso tremo muito, engasgo como não tivesse autocontrole. Por isso ela pensou que estava mentindo. Mas, não. Eu só não sei por em palavras isso tudo vertendo no corpo. Ah, estou muito desiludido! Chorei demais ontem a noite. Até liguei para lhe falar, mas você estava na redação. Estou escrevendo enquanto as palavras não se perdem de mim, e para não se perderem de você, onde me encontro. Fiquei pensando que errei com ela, e de mim sei: sou muito errado! Quisera ser certo como você, convicto, não porque te invejo, não é isso. É porque te admiro. Estou tremendo agora mesmo. Não sei lidar com emoção mais forte, sinto como se fosse ter uma síncope. Notou como mudou minha letra? Estou desbarrancando feito ela no papel. Quando discutimos ela saiu de casa pensando que as ocasiões de minha mudez são porque não sinto, e também aventou a possibilidade de uma terceira pessoa. Neguei, pois com minha pouca habilidade para amar jamais estaria envolvido em um segundo amor. Mas, nessa hora fui falar sobre como você me conhece bem e que ela poderia inquiri-lo para se certificar de minha fidelidade, dos nossos anos em comum, das pessoas quem você viu passar por minha vida e ela pensou que você fosse a terceira pessoa. Peço desculpas desde agora, sei do apreço que têm um pelo outro. Eu tenho amor pelos dois. Lembra-se daqueles meus meses de depressão? Eu finalmente disse a ela o que disse a você, e expliquei que não o fiz antes por timidez, para não parecer fraco. Ela chorou baixinho me dizendo que fraco era como ela sentia então, não entendendo a razão de eu tê-la trocado por você, debaixo do nariz dela. Eu disse NÃO, e repeti muitas vezes todo meu repertório de nãos, nems e locuções incongruentes. Em silêncio, ela foi até o quarto. Naquele momento a imaginei arrumando as coisas para ir embora, mas ela voltou e gritava coisas quase ininteligíveis enquanto jogou sobre mim uma foto de nós dois, seu isqueiro, e aquela caixa de madeira com a dedicatória entalhada, presente seu onde guardei tanto afeto. Cortou-me o braço a caixinha. E têm outras coisas cortadas em mim. Lembra-se quando lemos (parece presente, né, como se fizéssemos sempre) aquele trecho no livro do autor português e falamos sobre ele a semana toda: “da urdidura esbandalhada”? Se você permitir vou para Porto Alegre chorar no seu ombro e me costurar. Ela, sei, não volta mais. E mesmo se voltasse... Não quero feri-la com essa minha inaptidão para amar. Sinto culpa vendo-a ferida, mas eu não sei ser de outro jeito, não sei por em palavras. Uma vez li que isso é coisa de escorpiano, signo da água. Você é Aquário, certo?