À minha mãe.

Sempre quis chamá-la de "senhora", mas por hábito ou covardia nunca pude fazê-lo. Mas quando penso na senhora é por senhora que a chamo. E chamo a senhora de luz - aquela lá, que brilha longe, mas tão quente e maternal, onde repousa o meu retorno a qualquer hora. Que sustenta, impávida, três vidas, mas chora escondida no banheiro para que ninguém perceba. E foragida fuma no quintal, às vezes. Mas sei que chora mais do que fuma. Se eu pudesse voltar aos franguinhos de domingo, quanto amor a mais não teria expressado. Mas me acho velho, ou, no mínimo, rígido, para mudar um costume tão antigo: o de não falar. Presto atenção aos conselhos, apesar de demonstrar evidente desinteresse. Mesmo não aproveitados ao momento, residem embriões, prontos para tomar vida a qualquer situação que os sustente. E tem sido assim tantas vezes. Eu trocaria tantas palavras ruins por abraços mais demorados; e das caras feias, da ingratidão, apresentaria um olhar cândido, dócil, como se dissesse: a senhora é minha mãe, e eu a amo tanto.

Imagino por vezes a senhora de joelhos, cotovelos deitados à cama, coração trêmulo e martelado: pedindo ao Nosso Senhor que me mude a vida. Mas o Nosso Senhor me mudou a vida, só que ainda não me pôs nela - e peço tanto que me ponha. Mal posso ver a hora em que tomarei coragem de ajeitar a gravata e enfrentarei a rotina sem movimento de uma repartição. Mas não tem problema, a minha alma é puro movimento: obra d'Ele. Venho me imaginando sentado, trajado ao bom gosto do nosso século, atrás de uma mesa, enquanto um cliente - isto é, pessoa humana - me conta a sua história e seus problemas. E eu resolvo em meio à formalidades e diante de um juiz. Só espero que a formalidade não me tire o que de humano cultivei com carinho imenso. Tenho perdido dia após dia o sentimento trágico da vida. Talvez seja reminiscência da época em que queria ser palhaço - a senhora se lembra? Ser palhaço. Jogar vídeo-game. O espetáculo da minha infância me é carinhoso, apesar de a senhora pensar o contrário. Eu era um porcalhão, não tomava banho por dias seguidos; e agora, justamente quando esperam que eu não o seja, continuo sendo. Vou pra aula com uma jaqueta furada e acho graça, mas não a graça zombeteira dos cínicos, e sim a graça cômica dos palhaços. A senhora veja: em meio a tanta gente vestindo roupa de tantas e tantas centenas de reais, aparece um de roupa furada. É como se jogássemos uma bola para frente e ela de súbito virasse à esquerda - é engraçado porque imprevisível. Mas eu acho que prefiro um hospital em vez da repartição. Eu preferiria tantas outras coisas. Uma casinha em algum canto de Toscana. Cadeiras na calçada, o calor de um Recife, enquanto brincam as crianças incansáveis. Mas as outras possibilidades devem ser relegadas ao quartinho brilhante da imaginação, e é preciso fazer uma só. E talvez seja mesmo possível achar graça de toda a situação, por pior que ela seja. Vejo tantos destinos drásticos de tantos homens tão melhores do que eu. Não é preciso lágrimas. O que é preciso é ter luz, sentir-se aquecido: foi assim que alguns aguentaram tanto tempo os horrores de Auschwitz. Eu tenho a senhora, e um dia terei outras luzes: filhos, talvez. E a luz incriada, a luz de Jesus Cristo, tem se mostrado tão mais presente. Mas a mais evidente, a mais imediata, a que me ilumina com tanta insistência: a luz que brilha lá longe, tão quente e maternal...

Otto D
Enviado por Otto D em 01/05/2014
Reeditado em 01/05/2014
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