CARTA ABERTA DE UMA DESCONHECIDA

NA MANHÃ DE 16 DE FEVEREIRO DE 2014

Meu senhor: compreendo que me venho equivocando, há muito, quando digo que não sabes perdoar e que me odeias, pelo meu “abandono” no passado. Compreendo - acabo de compreender, desde o âmago da alma e da vida – que não vale falar em perdão nem em ódio, porque simplesmente me esqueceste há muito, senhor. Na verdade, sou hoje em ti a presença de uma linda borboleta mumificada, uma linda borboleta mumificada que te preenche de recordações de infernal enlevo; de enlevo infernal. Sou-te isso, apenas – eu não queria compreender, muito menos aceitar tal fato.

Não te existo na minha contemporaneidade - aliás, nem me existo quase, também, na minha contemporaneidade. Na verdade, és mais real em mim do que eu mesma em mim. Ao longo dessas longuíssimas duas décadas e meia ambos mudamos muito, obviamente, mas, meu amor por ti não morreu, foi se adaptando às mudanças e às descobertas (algumas terríveis, tu o sabes). Tu, inspiração sempre, para quase todos os meus versos e para quase todas as minhas prosas, sim, mas também tu homem, ser, presença sempre em mim: nunca uma ideia, apenas; nunca, jamais. Por isso tudo, para mim não há esquecimento possível.

Sei que a borboleta mumificada que me tornei ainda te inspira, mas, te inspira como reiteração do passado, das desistências, das auto desistências, dos demais abandonos, das renúncias, da Dor. Eu, que não te existo mais, persisto-te como Dor e Perda. Essa é, com muita certeza, a minha grande e maior condenação, também pelo fato de que fui eu que entrei em tua vida. Fui eu que entrei em tua vida. Perdoa-me: eu de nada sabia. EU DE NADA SABIA. Como poderia sabê-lo? Nada foi premeditação. Perdoa-me.

Por isso tudo, preciso não dar mais indícios de mim para ti, ainda sabendo que precisas do meu testemunho vivo de que permaneces em mim, ainda sabendo que precisas tanto da força que julgas eu tenha em mim, porque precisas da certeza do meu amor por ti para prosseguires a viver – não precisas apenas da certeza do “meu” amor, é preciso que eu também não me esqueça disso, jamais. Por que digo “julgas”? Porque já não tenho quase mais força alguma para partilha; a pouca força que me resta guardo para a sobrevivência neste mundo e tempo dantescos, de perdas de toda espécie, de perdas por todos os lados, a quase totalidade das quais de natureza irremediável, irreversível. Ainda que não reste para mim mesma quase nenhuma razão mais para mim mesma, tenho que guardar o que me reste para minha mãe. Para minha mãe. Para mim? Ora, eu não passo nem nunca passei de função, mas, não posso responsabilizar ninguém por isso, nem a ti. Bem quisera eu poder-me, ter o direito, ainda, de servir-me de verdade e fartamente, também a mim, ser-me generosa mãe provedora, também. Bem o quisera eu...

Não te acuso de nada nem te inocento, tampouco. Sou a grande responsável por ter permanecido. A única diferença é que nunca ostentei um rosto de plena inocência, nunca, e tu sabes muito bem disso. Seja como for, crucificar-me como sempre o tenho feito, não o farei mais, como também jamais crucificarei a ti. Tu és livre, como sempre foste. Não tens adversário maior do que tu mesmo, aliás o que sói acontecer com todos nós. Salva-te de ti, salva-te o possível. É o que tentarei fazer por mim, também. E não te esqueças: cada fala e cada silêncio e cada ausência minha é por amor, sempre e ainda por amor. Cumpre-me aceitar que, há muito, me tenhas esquecido. A razão (felizmente também sou um ser de razão) haverá de me ajudar no processo de tal aceitação.

Escrita na manhã de 14 de fevereiro de 2014.