CARTA DE IRRITAÇÃO E LOUCURA


 

 

Caros leitores,
 

Troco de sintonia. No dial busco outra frequência, a melodia adequada, talvez  a sintonia fina. Afino a voz, afio as garras, engrosso os punhos para desatar o punho da rede,  zarpar desembestada pela avenida aqui em frente. Por qualquer uma, na verdade. Gritar. Expressar minha raiva e loucura.
Estamos às quase 4 horas desta terça-feira e o verão paulistano está hoje de lascar! Na verdade vem nos lascando há bem uns vinte dias. Marcha inflexível sobre nós.
Naquela famosa passagem bíblica, Jesus exprimiu sua santa ira, ao chamar de hipócritas os escribas e fariseus. Mas a minha – esta de  hoje ao menos - não é santa... não tem propósitos humanitários nem sociais. Apenas o grito de um animal machucado, se eu o liberasse. Um grito de desespero e intolerância. Chega! Fora!

Mas não. Não faço nada disso. Reprimo-o.  Segurar o ímpeto - de amor ou de cólera – já é difícil. De instinto é uma autoagressão, porém... e o peso das consequências?

É cedo na madrugada e cedo-lhe a poltrona em que me atirei cansada, suarenta, calor de aleluias e pernilongos me cercando, cidade agitada e bares cheios, buzinas que passam  a curtos intervalos, comemorando sabe-se lá o quê com tanto alarido. Ou será apenas o descontrole emocional?
Zonza a minha cabeça, como que à saída do chicote de um parque de diversões. E a irritação cresce, abafando... Um infarto resolveria tudo? Água com gás, super gelada, sobre meia dúzia de cubos de gelo num copo alto. Bebo-a de uma só vez. Sem respirar. Vários copos com água,  bebidos em cascata! Sofreguidão. Matar a sede. Lavar as dores. Matar-me com excesso de líquido. Acabar-me em água.
Pena não ter folhas de hortelã em casa. Nem passiflora ou extrato de clorofila.

Adensando o clima: um e-mail malcriado chegou  errado à minha caixa eletrônica, com mensagem que, aparentemente, não era para eu ler... Ou era?  Dirigido a uma terceira pessoa, a remetente parece ter-se enganado no envio. Ato falho? Julgava-me torpemente. Pretendia desacreditar-me. Epa!
Apesar de causar-me desconforto e decepção foi bom. Há males que vêm para o bem; corta-se logo o mal pela raiz, conforme sábio ditado.

Rasga-se de cima a baixo o véu da hipocrisia.
Tá rasgado, moça!

 

Nascerá um dia mais leve amanhã? Podem prever? Há chuva a caminho e sossego?
Minha pele já não aguenta... Meu psiquismo e humor também não.
Não quero explicações sobre o efeito estufa e o aquecimento global. Isso não me interessa. Esse saber não refresca. Não me faz respirar mais devagar, livremente. Aliás, cientistas sérios não tributam que o aumento da temperatura global esteja diretamente relacionado com o aumento dessa estufagem. Nem aos descuidos do homem para com a natureza. Esses fenômenos são cíclicos, dizem, sem quaisquer causas identificáveis.
Será que se eu tentasse as quatro voltas em torno do jarro de barro, cheio de água até a boca, a chuva chegaria?


Sonho com ar-condicionado! Fechar-me numa caixa gelada e só sair dela quando absolutamente necessário. Mas sabe o que é? O condomínio não permite. Fere a estética da fachada da edifício, segundo estatuto. Como compreender racionalmente isso? Privilegia-se a aparência e não a necessidade ou conforto da pessoa. Tudo errado! A meu ver - desculpem-se os protetores e ativistas - é o mesmo que amparar animais em detrimento das gentes. 
 

Lembro-me agora de Meursault, o protagonista de O Estrangeiro, que num dia de intenso calor, "por causa do sol"  alega ele, mata alguém na praia. 
Esta é apenas uma das pontas da história. O livro fala sobre a hipocrisia na sociedade humana, mormente no último século. Sim.  Decerto por isso o livro de Camus veio-me à lembrança: calor, hipocrisia, irritação. Absurdo e outros absurdos que nos cercam.

Preciso mudar de país, caros leitores.
Ou morar em regiões montanhosas com temperaturas amenas.

O calor não é civilizado. O país tropical, ensolarado, também não. Acho indecente termos que passar o dia crudentes, roupas úmidas, a pele oleosa, gotejando, gotejando... Sei lá... Não é para mim. Gosto do frescor, dos dias arejados, sol tênue e saudável.


Abraços, em clima abafado de loucura.
Perdoem o des-abafo.

KML



 

imagem: uma das capas de "O Estrangeiro" (A. Camus)

KATHLEEN LESSA
Enviado por KATHLEEN LESSA em 11/02/2014
Reeditado em 14/02/2014
Código do texto: T4687477
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