Cartas da Amazônia 3
Hoje eu ouço muito falar em bullying na escola. Parece que esse é um dos temas da moda, e muita gente tem se preocupado com isso, tentando evitar problemas, violência e traumas no ambiente escolar.
A verdade que o bullying não tem nada de novo. Ele sempre existiu dentro da escola, e praticamente todo adulto de agora se lembra de alguma situação constrangedora que passou na infância. Talvez alguns não tenha vivido nenhuma situação direta de agressão e criticas, mas com certeza todas as crianças de alguma forma presencial isso nas aulas ou no intervalo escolar.
Eu mesmo sofri bullying na infância, mesmo que naquela época ninguém se preocupava tanto com isso. E posso dizer que foi muito difícil pra mim, especialmente pela ingenuidade que eu tinha.
Eu nasci no interior do estado do Pará, numa pequena comunidade ribeirinha. Era uma pequena vila, com poucas casas, do tipo palafitas, todas construídas no barranco do rio, suspensas poucos centímetros acima do nível d’água. Ali vivíamos em sintonia com o rio, eu, minha família, e todos os meus parentes próximos. Em geral, essas vilas ribeirinhas são formadas por pessoas próximas, quase todos familiares e agregados que se juntam por matrimonio, e dividem o espaço de forma coletiva e bem simples.
Lembro-me que era uma vida bem simples, em sintonia com a natureza. Tudo que a gente tinha era extraído da natureza, ou dos barcos que ali passavam para trocar mercadorias pelos produtos extrativistas, principalmente a farinha de mandioca e o açaí que produzíamos.
Eu estudava numa pequena escola, com poucas crianças, todas amigas umas das outras. Nós fazíamos as atividades, depois saímos para colher frutos na mata e para nadar no rio ao final da tarde. A professora era uma tia nossa, que dava todas as disciplinas, e também fazia a função de merendeira e diretora da escola. Ela cuidava de tudo, com muito carinho e dedicação.
Eu era filho único, vivia com minha mãe e minha avó materna. Não conheci meu pai, pois na verdade desde cedo fui ensinado que eu era um “filho do boto”. Isso mesmo, um filho de um encantamento que minha mãe sofrera desse animal mítico que habita as águas da Amazônia e enfeitiça as mulheres inocentes.
Aquilo tudo era bem normal para mim, e para meus colegas de escola. Na verdade, ninguém nem se preocupa com o fato de que eu não tivesse pai. Eu, minha mãe e todos que conheciam me tratavam bem, da melhor forma possível, e aquilo nem me preocupava. Eu cresci perto de muitos primos, tios e amigos da vizinhança. Tinha sempre uma referencia masculina próxima e o amor que recebia de minha mãe e dos demais familiares preenchiam a falta de um “pai de carne e osso”.
Mas, aos 12 anos minha mãe faleceu por causa da malária. Logo em seguida, minha avó se mudou para a capital, Belém, e me levou com ela. Lá, na cidade grande, fui estudar em uma escola bem diferente daquela que eu conhecia na pequena vila aonde eu havia nascido e vivido até então.
Foi um grande choque. A adaptação foi muito difícil. E o pior de tudo que na minha inocência, não tinha ideia que ao falar que era um órfão, fruto de uma relação misteriosa de minha querida mãe com um “boto”, seria tão agredido.
Bastou eu contar uma só vez aquela história, na primeira semana de aula, para que aquilo me acompanhasse por todo o ano letivo. Logo todas as crianças já estavam sabendo do fato e caçoavam de mim. Até a professora destratou aquela história, que na minha inocência é a mais pura verdade.
Eu sofri muito, pois havia crescido num ambiente acolhedor e confortável. A escola da pequena vila aonde eu nascera é um ambiente amigável e feliz.
De repente minha vida tinha mudado drasticamente. Eu perdera minha querida mãe, havia mudado forçosamente para capital. Tudo aquilo que amava tinha ficado pra trás. E para pior ainda mais, sofri muito na nova escola.
Demorei bastante para superar aquilo tudo. Atualmente já estou formado, com a minha própria família construída. Sou casado, já tenho uma filha. Estou realizado profissionalmente, e graças a Deus superei aquele grande trauma de minha infância.
Mas, certamente que não desejo que nenhuma criança sofra bullying nas escolas, pois sei o quanto esse problema afeta a vida sentimental e psicológica de alguém. Eu sofri na própria pele esse mal e não quero ver nenhum criança passando por isso !!!
Eu estou fazendo esse desabafo, pois já superei toda a dor que passei em minha infância, mas quero que a minha história sirva de reflexão para pais, educadores e diretores de escolas.
Belém – PA, 08 de fevereiro de 2014.
João Vale dos Santos
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Ilha de Marajó - PA, Fevereiro de 2014.
Giovanni Salera Júnior
E-mail: salerajunior@yahoo.com.br
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