Eu, meu avô, a leitura e a escrita

Meu contato com a leitura começou por volta dos quatro anos de idade. Quem me proporcionou essa relação tão amistosa com o ato de ler foi o meu avô paterno, Valentim Antonio de Sousa, um exímio leitor, homem de intelecto aguçado.

Em nossa pequena cidade, Coelho Neto-MA, ele ocupou os cargos de vereador e prefeito. Nessa época, eu ainda era um bebezinho. O certo é que com a separação dos meus pais, meu avô adotou os quatro netos, sendo eu a mais nova. Como passamos a morar com ele tivemos muito do seu caráter, a começar pela intelectualidade, fruto de muita leitura. Possuía um acervo de livros apreciável, tudo organizado numa prateleira branca de madeira. E assim, num belo dia, ele começou a nos apresentar seus magníficos livros.

Na varanda de casa ele nos reunia e passava horas a fio contando-nos bonitas histórias. Ficávamos organizados em meia lua, sentados no chão, todos de olhar fixo em suas palavras. Foi minha primeira experiência com a leitura, aquela em forma de conto, narrada por alguém, que me contagiou e me instigou à procura de outras e outras mais...

O que me dava prazer nesses momentos proporcionados pelo meu avô era poder ver os gestos que ele fazia a cada frase concluída, a cada cena realizada. Era tão autêntica a forma como ele interpretava que eu me sentia dentro da narração, tornava-me também uma personagem. O mais interessante era que quando ele concluía uma história, que não tinha um final por mim esperado, eu ficava chateada porque queria um final do meu jeito. E o melhor de tudo era que ele me apoiava, nem me dava bronca, dizia até que eu estava certa, pois nem sempre devemos concordar com o arremate do autor.

Fui crescendo e a cada dia novas histórias eram-me apresentadas. Na maioria das vezes só em casa, porque na escola não tinha nenhum incentivo. Com o tempo, já estimulada pelo meu avô, passei a me interessar mesmo foi pelas leituras das histórias em quadrinhos. O contato com essas revistas aconteceu na escola através das minhas amigas, não por parte da professora. Fui me interessando por elas, achava os desenhos coloridos um primor, parecia que os personagens tinham vida própria, e tinham mesmo, mas lá dentro das narrações. Foi com essas revistas que eu aprendi ler. Comecei pedindo emprestadas as das colegas de classe porque eu não as tinha. No fundo, eu queria ter minhas próprias revistinhas, guardá-las depois de lidas, pegar quando tivesse saudade, pegar novamente, reler, puxar outros balõezinhos de fala quando tivesse necessidade de acrescentar algo a mais na conversa... Só que isso eu não podia fazer, elas pertenciam a minhas amigas.

Depois de certo tempo, de tanto insistir, minha mãe teve que comprar minhas revistinhas. E comprou. Foi até a livraria e trouxe-me somente uma. Disse que o dinheiro estava pouco e que não dava para adquirir mais exemplares. Conformei-me. Ansiosa, comecei a folhear rapidamente, depois mais devagar e depois apreciando cada detalhe. Comecei a decifrar aquelas letrinhas, transformá-las em palavras, uni-las e transformá-las em frases, e por fim convertê-las em história. Descobri o mundo mágico das letras, das palavras, das frases, o caminho da leitura. Agora, com meus próprios olhos, boca, ouvidos, nariz e tato, podia ler aquelas narrações da minha maneira, do jeito que eu quisesse, de trás pra frente, de frente pra trás, podia começar num dia e terminar no outro, podia conversar com os personagens, podia mudar o rumo da minha narrativa. Enfim, agora eu era livre, podia passear no mundo colossal da leitura.

Desde então, ocupei o posto do meu avô na contação de histórias. Toda altiva, queria mostrar para as minhas amigas, inclusive para ele, que tinha capacidade. Chegara a hora de colocar o que aprendi em prática. Como alguns anos atrás não havia tanta novidade tecnológica como hoje, celular, internet, iphone etc., eu ia de casa em casa chamar minhas amigas, convidava até mesmo aquelas que ainda não faziam parte do meu rol de amizade, queria mostrar a todos a minha última inovação: já sabia ler.

Depois do convite feito e aceito nos juntávamos no terraço da minha casa, eu bem no centro da roda, toda preparada, segurando um belo livro, erguendo-o como se fosse um troféu, e começava a leitura, dava vida aos personagens e me esforçava para a história sair bem contada. Lembro-me de que tentava imitar todas as falas; se fosse a vez de um personagem triste, minha voz também era de tristeza, se fosse a vez de um personagem alegre, também me alegrava, ou seja, me fazia uma com eles. Esses dias se repetiram por muitos e muitos anos, até hoje eles se repetem, só que agora com outros amigos, meus alunos.

Nessa época, junto com a leitura, veio outra coisa para completar esse prazer: a escrita. Não tardou para que eu traçasse as primeiras palavras, pois o meu contato com os livros era diário, eles faziam parte do meu mundo, eram meus amigos multifacetados, o que me deu muita facilidade para escrever. E de imediato, fiz o há muito tempo tinha vontade: escrevi um bilhete para o meu avô. Sempre tive anseio de fazer isso, queria dizer a ele coisas que falando não teria tanta emoção, afinal as palavras se perdem no ar. Achava que escrevendo era diferente, tinha mais dramaticidade, mais entusiasmo, dava para presenciar a reação dele diante daquelas letras, que se juntavam a outras e formavam elegantes palavras e depois garbosas frases.

Finalmente escrevi meu bilhete, perfumei-o e dobrei-o em formato de coração; as letras pareciam desenhadas de tão caprichadas que estavam. Criei coragem e entreguei ao meu avô. Ele recebeu, abriu, prestou atenção nos coraçõezinhos pintados de lápis de cor, abaixou a cabeça e começou a ler. Eu fiquei ali, esperando a resposta. Ele, vagarosamente, levantou a cabeça, fixou os olhos nos meus, que por sinal já estavam marejados, deu-me um abraço e disse: “seja bem-vinda, minha filha, a dois caminhos surpreendentes: o caminho da leitura e o caminho da escrita”.

Bem, neste relato eu não disse a você, leitor, o que havia no bilhete que escrevei para o meu avô, mas como aprendi que o autor nunca deve dizer tudo, eu vou imitá-lo e pedir que tire sua própria conclusão. Então, o que acha que eu disse a esse homem maravilhoso que me criou, me ensinou a viver, me ensinou a pensar e me apresentou a um objeto vivo chamado LIVRO, e a um caminho extraordinário chamado ESCRITA?

Elian Bantim
Enviado por Elian Bantim em 04/01/2014
Reeditado em 26/10/2015
Código do texto: T4636798
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