o rei vai nu

Tinha de ser, só enquanto somos desconhecidos é que nos podemos conhecer como conhecidos de quem conhecemos. Quando começamos a desconhecer quem nos conhece, só nos sentimos iguais e os mesmos se cristalizarmos numa ideia feita de quem somos ou se continuarmos a ser em função de quem éramos... para meia dúzia de pessoas?

Entrei na questão do “ser social” do ser humano, meu húmus. Agora que sou locutor de televisão recebo cartas, vou responder a uma delas.

“É já agora, vou deixar crescer o cabelo! Creia no entanto que é só até me dizerem que tenho de ir à Caracterização, onde também nos cortam o cabelo se isso for considerado o mais indicado. Somos uma imagem no écran, uma voz a sair dos alto-falantes e tentamos transmitir a presença duma pessoa. Nada mais virtual que as virtudes dum apresentador, creia.

Esta será uma ideia meia tola, é o que me vem à tola! Pena a sua bisneta escrever num computador, peça-lhe para escrever à mão se quiser ditar uma resposta a esta. Desde já saiba que me custa a acreditar que a senhora tenha 95 anos, mas também não vejo razão para não os ter. O fazer-lhe lembrar o seu primeiro namorado, faz com que a minha imaginação passe a poder ter memórias muito antigas.

Gostei da descrição a partir da sua sala, onde me vê na televisão. Deu a ver a cor e o movimento dos chorões, bem como o lago onde tem o cisne e os patos. Tive desgosto em saber que lhe tinha morrido a fêmea do cisne, cuja cabeça era parecida com a reproduzida em ponto mais pequeno na fruteira que tem no aparador da sala de jantar. O papel da sua bisneta, a traduzir em frases a sua descrição do ambiente onde a televisão é «a janela onde vê as notícias do mundo», deixou-me curioso sobre o duo.

Duas senhoras a viverem numa mansão, com um «jardim e quintal esquecidos pela cidade em volta». Acabei por não conseguir deixar de olhar com atenção para a fachada da sua casa, realmente dei por mim a pensar que «guarda o sossego duma outra cidade, mais antiga, onde ainda circulavam carros atrelados a cavalo e cavalheiros que eram cavaleiros».

Não deixei de me lembrar do seu convite, nem de como é amplo o leque colorido da beleza: «a minha neta é uma mulher muito bela». Como seriam as mãos da mulher que escreveu estas palavras falando dela? Pensei isto, como se o pensasse agora. Esta é uma memória bem actual, exactamente no momento em que lhe digo aceitar o seu convite.”

Estão fechadas as aspas do que seria em itálico se fosse e assim vou, a caminho do Fim. Agradável ter um fim assim, à minha espera, a precisar de mim para ser... como eu quero. Poder nele pôr querer e crer, acreditar na aventura de haver ventura, virtude e felicidade para quem é capaz de sentir o que escreve.

Já sei qual a notícia de abertura do noticiário da noite, mais um desastre. Mundo previsível este onde a desgraça impera, bem como a imagem... Agrada-me saber como se tece o prazer, mesmo se ele é feito do tecido com que “o Rei vai nu”. Ele sentia-se mais esplendoroso envergando a coroa sobre a farda e manto real mais leve, macio e fino. Aquele que ninguém questionava na qualidade, nem nos acabamentos: era perfeito. Era um engano? Foi pena o miúdo gritar...

Vou aproveitar e levar para a mesinha de cabeceira o “Húmus” do Raul Brandão, ler a textura de nuvens da sua escrita onde lavo a alma.

R

Francisco Coimbra
Enviado por Francisco Coimbra em 29/08/2005
Reeditado em 29/08/2005
Código do texto: T46004