Carta sobre um história inacabada.

Cenas de uma amizade estranha

Cena 1: Uma mesa de um bar do lado da faculdade. Mesa no canto, ao lado da parede e o som de uma cerveja gelada sendo aberta. Eles se sentam, de frente, e um estuda o outro. Alice tem uma simpatia enorme por Ismael, sempre arrojado, parece que sempre que fala todos se calam, é de quem todos gostam, simplesmente porque não há como não gostar, possui um carisma inexplicável. A conversa flui, bem como a cerveja. Ela pensa que foi ótima ideia aceitar o convite, porque ele é muito divertido, pergunta, indaga o tempo todo e parece realmente interessado em ouvir as suas respostas. Percebe características dela que ninguém fala, é observador. Se sente um pouco encabulada por causa do olhar perscrutador, mas acha que se deve pelo fato de ele estar gostando da conversa. Vão embora. Ela entra no carro com a impressão de que realmente, o colega é tão inteligente, interessante e especial quanto pensava que fosse. Depois Ismael manda um e-mail falando que foi legal aquele dia, e ela pensa que ele é muito querido mesmo!

Algumas festas, aulas encerradas - e até iniciadas - em botecos e e-mails depois, foi construída uma amizade diferente. E cheia de más intenções. Alice não entendia o porquê, mas os assuntos de Ismael a atraiam de tal forma, que mesmo sendo noiva e ele casado (e pai), se rendeu a conversas inteligentes e divertidas, mas quase sempre permeadas de duplo sentido, de uma certa maldade. Era um amigo que incitava sua imaginação, pois falava as coisas certas, no momento certo, com uma atitude permanentemente proativa e perspicaz. Parecia que sabia exatamente o que fazer, passava segurança, e Alice sempre foi de opinião de que um homem com este perfil saberia como agradar uma mulher em qualquer circunstância. Não estava errada.

Cena 2: Último dia de aula, mesmo bar, mesma cerveja, alterada apenas a quantidade. Todos os colegas juntos, comemoração - o próximo encontro é na formatura! -, álcool, brincadeiras e Ismael lá, com aquele olhar penetrante, e aquela atitude peculiar, fazendo Alice sentir vontade de experimentá-lo, para ver se é bom mesmo como ela pensa, mesmo com todos os contras, mesmo sendo errado. Mas de jeito nenhum ela faria isso, é só vontade mesmo.

No momento de ir embora, como sempre, gentil, Ismael vai atrás, para acompanhar Alice até em casa. No meio do caminho, numa rua deserta, faz sinal de luz para pararem. Alice pensa no que esse maluco vai aprontar dessa vez. Ele desce do carro, e daquela forma segura, como age sempre, dá um beijo nela e volta para o seu carro, cheio de razão, para seguirem o caminho para casa. Alice mal consegue acreditar na ousadia, invadindo assim o espaço, e como ele sabia que ela não iria reagir? Mas que beijo bom... Este momento foi o gatilho para todas as outras invasões que Alice permitiu Ismael fazer. E ele soube muito bem como aproveitar cada uma delas.

Não foram muitos encontros depois disso, mas foram com uma intensidade que a atormentou. Alice teve algumas oportunidades de se apaixonar, mas só aconteceu com o noivo, quando era ainda adolescente – também achava que se devia a isso tanta paixão – e assim, se achava inviolável. Debochava quando alguém se dizia perdidamente apaixonado, principalmente quando o alvo era considerado uma “fria”, que não tivesse futuro algum. Cansou de discutir com a amiga, com quem divide todos os segredos, que pessoas inteligentes devem transar, ter casos com “frias”, mas nunca, jamais se apaixonar. Nesta categoria, enquadravam-se basicamente homens comprometidos, que moravam muito longe (o que não é prático, e ela gosta de ser prática), ex-presidiários, drogados, hipocondríacos, ou seja, problemáticos de qualquer espécie.

Alice não percebeu o momento que se apaixonou, foi criando-se uma estranheza nas sensações em relação a Ismael, até ela perceber que estava, de fato, gostando mais dele do que um limite saudável. E por quê? Pelo sexo, que ele fazia tão bem que ela ficava completamente entregue e vulnerável? Pela forma como ele conseguia estar presente o tempo todo, de algum jeito? Por fazer com que ela se sentisse uma mulher muito especial?

Para sua defesa, Alice poderia culpá-lo, pois nunca foi incisiva, nunca deu o primeiro passo, nunca investiu para fazer o que sentia vontade porque a culpa a consumia demais. Era culpa por estar traindo alguém que ama muito, vergonha por estar se envolvendo com homem alheio, com uma filhinha, por estar mentindo o tempo todo, por ter a preocupação constante de apagar todos os indícios. Mas na verdade, Ismael tinha apenas 50% da culpa. E todas as vezes ela pensava que era a última. E todos os dias ela pensava em se afastar, mas nunca conseguia.

Cena 3: Mais uma discussão sobre o “afastamento”. Alice se sente a invasora de um lar feliz, como uma personagem infame de uma novela igualmente infame da Televisa, além de se sentir mais perdida que nunca na própria vida, que já estava complicada e carente de mudanças, pois ela sempre adia tudo. Será feita mais uma tentativa.

Agora Alice vai tentar, com afinco, transformar Ismael de novo em um amigo como os outros. Vai lamentar cada conversa a menos que terão, cada risada a menos que ele provocará nela, cada sexo inebriante que deixarão de fazer. Desta forma, ela espera facilitar a vida de todos. Diversas coisas a lembrarão de Ismael: cavanhaque, pagode, estacionamento, carro invisível, legging cinza, boA noiTe, Jägermeister, sábados de chuva, sauna, empreendimentos, presente rosa, (...)... Quanto tempo um aviso de e-mail ou mensagem vai causar sobressalto? Em quanto tempo os dias não terão mais 48h? E no próximo encontro dos colegas, vai ser normal?

Alice sabe algumas coisas, Ismael vai continuar montando a família como deve ser, que a propósito, está crescendo, e ela vai ficar aqui, avaliando como sempre, se também monta uma como todo mundo, ou se monta a si mesma.

OBS: Alice ao menos tem vergonha por escrever impulsivamente um texto autobiográfico tão ruim que só Ismael mesmo teria coragem suficiente para ler, e espera sinceramente, que seja excluído, e bem esquecido depois disso. Só foi feito porque ela cumpre o que promete, mais cedo ou mais tarde. Com isso podemos evidenciar (como uma lista do fim do dia): Alice é tão boa escritora quanto gestora ambiental e surfista calhorda (talvez se ficasse uns cem anos escrevendo melhorasse), possui uma cara de pau brutal pra mandar (se é que vai ter coragem de fazê-lo), e por fim, realmente, Ismael é muito especial, e vai fazer sempre parte das boas lembranças de Alice, bem como o presente rosa.

OBS2: Poderia ter erotizado, que teria dado muito mais certo, mas hoje não estou com o espírito pra isso. Talvez outro dia.

Isma Silva
Enviado por Isma Silva em 13/11/2013
Reeditado em 13/11/2013
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