Desabafo no Papel de Pão
Vendo-te lavar a louça de ontem, mal posso engolir meu café, minha querida... Prefiro quando me pões o café, e com tua cara fechada, já partes para o quintal, com a tua xícara de café fervendo e teu maldito cigarro...
Ah Catarina, lembro-me de quando a conheci... Pulava de cabeça em ti, mas eras tão rasa! Sempre rachava a testa no concreto de tua leviandade. E com coração ferido e preso no entulho de teus atos, gritava e me debatia entre brigas e escombros. Então, como bem te lembras, o teu beijo de cianureto por fim matou-me o bom senso, e em teus escombros fiz moradia. Hoje teu escravo, chaveiro, chofer, cão de guarda, cartão de banco e mordomo, levo esse casamento contigo em religiosa resignação... Em troca presenteio-te, magníficos galhos, que ostentas satisfeita, pois que as putas fazem por ti o serviço que odiavas prestar-me... Vejo a gratidão em teus olhos, ao ver-me chegar da esbórnia.
Nossos filhos seguirão logo seus rumos, e talvez tenhamos que investir em mais tecnologia e entretenimento, posto que o diálogo está fora de cogitação, desde o nascimento do nosso primeiro rebento... E assim amargaremos os dias, até que o destino diga qual de nós se aliviará com a partida do outro. Caso sejas tu a viúva, de ti dispenso as flores do finados... Há tempos venho ensaiando dizer-te isso, mas achei melhor escrever-te. Dispenso as flores por um motivo simples: não quero sentir o cheiro de teu alívio irradiando-se diante de meu túmulo... Caso seja eu o afortunado, no finados minha viuvez acenderá velas para tua sogra a quem tanto odeias, mas não direi a nossos filhos que são elas, as velas, em intenção de mamãe: direi ser na intenção da mamãe deles, e tu não me desmentirás, não é mesmo? Assim, hei de poupar-te de ouvir os rojões comemorativos em meu peito ao vê-la em sono eterno...
Proponho este trato. Sei que aceitarás. Boa sorte com o almoço, que hoje consigas engolir o que fizeres em tuas panelas. Como sempre, almoçarei na casa das quengas.
Até à noite, amor de minha vida...
Teu Fardo