Carta...

.:.

Eu queria me pertencer. Ser de mim mesma e ter o direito de mandar nos meus sentidos e desejos; controlar as pulsações do meu corpo e dominar a transparência da minha alma.

Aprendi a dizer “Sim!”. Contrariei vontades alheias, externando singelos, mas decisivos “Nãos!”. Aprendi a ficar em cima do muro, sibilando, meio tímida, é verdade, angustiantes “Talvez...”. Se existisse tão somente a tabela-verdade, a binária opção de ficar entre o ‘mais’ e o ‘menos’, entre o ‘bem’ e o ‘mal’, o ‘sim’ e o ‘não’ – todas essas formas maniqueístas que me foram reveladas resultariam em verdades ou mentiras. A existência do talvez, entretanto, angustia. Aflige quem espera e que faz esperar. A dúvida, considerando-se a efêmera e precária vida que temos, presente e dom, claro, não obsta o esvaziamento da ampulheta... Enquanto duvidamos a vida flui e, de nossas artérias e veias, o sangue nunca para de circular, quente, decisivo e vital.

Falaram-me, e acreditei, que existem razão e emoção... Entretanto, não me avisaram, ou nunca quis perceber, que meu coração poderia pulsar muito além dos meus desejos. Percebi, recentemente, e isso me assusta, que certos timbres de vozes, que determinadas palavras e específicas possibilidades de sentir meu próprio corpo, tiram-me a noção de pertencimento. Descobri, não faz muito tempo também, que meu coração está na minha mente – que ele pulsa e me provoca incontroláveis arrepios. No autorretrato dos meus Raios-x, as artérias pulsam carregadas de sentimentos que afloram do meu arredio inconsciente. E minhas veias, submissas, encarregam-se da reposição. Minhas artérias, sem autorização, tomaram rumo ignorado, tornaram-se autônomas. Aliás, buscam o que sei que desejo, mas insisto em postergar, fugir, adiar...

Em qualquer direção existem dois sentidos. Mudando-se o azimute, dois outros surgirão. Serei, portanto, meu próprio relógio – o ponteiro das horas e dos minutos, tudo ao mesmo tempo, duas velocidades que circulam e se entrecruzam na unidade relativizada do mecânico tempo. Se, efetivamente, os ponteiros sempre se cruzam duas vezes a cada hora, existiriam exatas setecentas e vinte possibilidade de caminhar, em trezentas e sessenta possíveis direções – quase uma possibilidade diferente por dia! Ah, mas os ponteiros travam! Meu relógio, enigmático internamente, possui engrenagens que apetecem o instinto investigador. Possíveis compradores adoram a carcaça: pulseira doirada, formato atraente... E, agindo binariamente, divido-me entre razão e emoção. Para aonde seguir? Melhor: a quem obedecer, razão ou emoção? “Seu coração está na mente... Seu coração está na mente... Seu coração está na mente...”. Essa repetição se assemelha ao próprio pulsar do meu corpo que agora, mais uma vez, sem me avisar, parece ouvir vozes... Nossa, estou arrepiada, suando frio – deliro? Acho que não, talvez.

Às 2h50min ou 10h10min, incluindo-se o erro de Paralaxe, meus ponteiros sorriem – é tão bom sorrir! Entretanto, se me olharem de ponta-cabeça, estarei, nos mesmos instantes, tristonha ou chorando. Fundi os instantes, dois a dois, e surgiram quatro semirretas de mesma origem, centradas no cerne da máquina, e quatro ângulos opostos entre si. Os antípodas se anulariam, neutralizando-se mutuamente? Fisicamente tratados, formam vetores de mesma origem, opostos, mas que não se anulam! É que o ponteiro mais veloz, o dos minutos, é maior que o das horas, gerando resultante diferente de zero. Então, anular o tempo é ficção inócua? Se for verdade, viver é sucessão de resultantes... E a liberdade só nos habita até que a flecha do Cupido, vetor materializado, atinja-nos em cheio o coração. Fui atingida – nem senti a flechada, confesso. O que me machuca – e isso ainda direi ao arqueiro – é a forma como me capturou. Sei que o amor é espanto risonho, sucessão de surpresas e clarividência da intimidade dilacerada pela flecha, mas precisaria doer tanto?

Eu queria me pertencer e voltar a ser de mim mesma, mas depois que entrei na floresta e me deparei com o desconhecido da vida, os deslumbramentos que me afloraram, apesar de me apavorarem, revelaram que para além do mundo interior que nos habita o inconsciente, existe infinidade de direções e sentimentos que migram, pendulando entre o indizível prazer da entrega e o sangrar da lancinante dor que nos invade. Quando nos sentimos incapazes de aceitar que já não nos pertencemos, surge, deveras, o inevitável questionamento: que rumo devo tomar? Seguir meu inconsequente coração e me entregar, entrando na densa floresta, enfrentando os perigos da noite, sob a proteção única da Lua; ou, noutro sentido, fugir da natureza selvagem e da minha própria natureza humana, seguindo o caminho por onde sempre andei, onde conheço todas as ruas, as paradas e as intenções das vozes que me rodeiam e me servem os mínimos caprichos?

Se for verdade que meu coração está na minha mente, quero experimentar! Preciso desvendar todos os segredos da floresta, entrar no mato das incertezas que me apavoram e, depois de me deleitar com tudo, poder gritar, feito loba e fêmea voraz: valeu a pena!

Araújo Pinto

Iguatu-CE, 25 de outubro de 2013.

16h39min

.:.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 25/10/2013
Reeditado em 25/10/2013
Código do texto: T4541901
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.