Livro
   Um livro, Ana Maria, é como um filho: bonito ou feio, o pai o ama, e procura defendê-lo contra invasões e agressões que lhe tira a paternidade, e fere no brio da criação; a vida me ensinou contudo que os sebos (alfarrábios) são o cemitério das vaidades. Amo, como virtude, a dignidade sem ostentatação, a bondade viril sem artifícios, bens recebidos na casa paterna. 
   Não me esqueço do que aprendi com inesquecível mestre: muito me aborrece deixar as coisas pela metade. Posso não tocar num assunto, dizia ele, mas se nele toco, tenho de levá-lo até o fim: nada deve ficar na sombra. 
   A reputação de um dentista, médico, padeiro, pedreiro, escritor depende apenas do que ele faz. 
   O projeto ou esquema de Liras ao Vento, seguiu ou procurou seguir o que se lê em I Coríntios 13. Ainda que eu fale a língua dos anjos e dos homens, e não tivesse AMOR... (Que maravilhosa sintonia com o seu pensar) Fico feliz!
   Permita-me dizer-lhe que Liras ao Vento terá uma segunda edição, revisada e, quem sabe, melhorada. Assim é e deve ser a vida. 
   Chsterton, na época muito badalado: "Quem fica louco não é o poeta que põe a cabeça na lua, mas o físico que quer por a lua na cabeça..." A classe média sempre foi e continua reacionária. É uma pena! Eu já vivi um pouco de tudo. O convívio íntimo com a ciência mais abstrata me mosrou na carne as ambiguidades desse tipo de pensamento, e posso afirmar que o que digo hoje nas reflexões de Liras não são considerações generalizantes, mas, para mim, verdades profundamentes vividas e sofridas. Liras ao Vento não foi idéia minha – mas uma encomenda. Escrever é perder "amigos" e conquistar inimigos. Isso é maravilhoso. Como místico busquei a transcendência... Foi uma fase intensamente voltada para dentro de mim mesmo, muito poética mas também muito solitária. E os poemas que escrevi nessa fase refletiam ao mesmo tempo essa busca de fusão e essa profunda solidão. Meu desejo de participar, de não ficar à margem dos acontecimentos, com o sentimento que me ligava à transcendênccia, mas através do Cristo encarnado no mais pobre dos pobres. Isso é AMOR. O que me norteia é o compromisso com a minha própria consciência, com a minha verdade interna. De repente descobri que até então eu encontrava uma saída coletiva, e não a minha individual. Nunca fui e nem quero ser santo; quero, contudo, saber e procurar o meu caminho. Tudo que sai, querida Ana, do caminho tradicional, do roteiro pré-estabelecido é condenado, massacrado, amarrado e preso numa cruz. Exemplo: O Cristo Jesus. 
   Hoje, parece que já faz parte da conscência coletiva que é preciso uma profunda transformação nas relações humanas, e imediatamente para que se reverta esse quadro de destruição. 
   Isto quer dizewr que, visto assim levianamente, o fim da história pode ser o fim do mundo...
   A auto-suficiência do homem tradicionalmente requer a mulher como sua propriedade na relação com os outros. O homem heróico é aquele que vive isolado, que não precisa de ninguém, aquele que é capaz de viver em busca de aventuras. 
   Tal como Ulisses, que durante vinte anos andou o mundo inteiro e depois de tudo acabado volta a sua casa e encontra Penélope, esperando-o. E o símbolo de Penelópe é muito interessante: ela era aquela que desmanchava de noite tudo aquilo que criara durante o dia. O mito mostra o homem sendo obrigado a criar para sobreviver num mundo hostil e a mulher, passíva, esperando sempre e sempre desruindo o que cria. Nos contos de fadas tudo termina de maneira feliz. Mas Branca de Neve, Cinderela ou a Bela Adormecida são mulheres que esperam passivamente o princípe salvador. Por outro lado, na saga de Peer Gynt, de Ibsen, o herói que vagou a vida inteira vem morrer nos braços da noiva virgem que deixara há muitos anos e lhe permanecera fiel...
   A mulher deve ter uma conexão íntima e não uma oposição, uma intimidadse e não um controle com o mundo e os outros sem se perder. 
   Sós os poetas e os místicos, os artistas e os criadores são capazes, entre os homens, de alcançar essa intimidade, e por isso são reconhecidos como marginais pelos outros homens. A subjetivide é alocada à mulher e a objetividade ao homem, e os homens subjetivos, por mais importantes que seja a sua missão cultural, são sempre desvalorizados. 
   "A esta hora da noite ninguém passando na rua, só o sereno e a lua, somente a rua na rua".
   Sobre o poema Carmo do Rio Claro, alguém disse: "É cantiga, é oração, é poesia bela, comovente e necessária, por sua ousadia de imagens e pela ruptura que representa com as caracterísicas da produção poética brasileira mais recente. Em sua grandeza, o poema comove, instinga, e dialoga com a melhor poesisa brasileira, sobretudo de dicção mineira, como Romanceiro da Inconfidência, da carioca Cecília Meireles, e Contemplação de Ouro Preto, de Murilo Mendes. Reconhecemos na poesia de Roberto Gonçalves não este ou aquele poeta, mas lugares-chave de nosso lirismo".
   É apenas na segunda metade da vida, no seu caminhar para a morte, que começa o princípio de individuação. Segundo Jung, a individuação é um novo tipo de conexão com o outro e com o mundo. Já maduro, o homem é capaz de voltar a se relacionar com o mundo e com os outros a fim de cumprir a sua plenitude. Se a cruz é lugar de martírio, é também o lugar das melhores esperanças.

 
Roberto Gonçalves
Escritor
RG
Enviado por RG em 06/09/2013
Reeditado em 20/02/2019
Código do texto: T4469581
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