Quinta carta
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Estará no próximo livro...
"Contos que falam" - o livro é permeado por cartas que dialogam com os textos, rompendo a linearidade das narrações.
Planeta Terra, início do Século XXI.
Sofro...
O horizonte que me banha a trêmula e incrédula alma não tem o mesmo brilho. As pessoas já não se cumprimentam como antes, à época dos nossos pais. E olhe que não sou tão velho assim. Prova disso é que meus cabelos brancos, embora teimosamente, surgiram somente agora, desarmonizando o quase contraste do também quase uníssono breu que configurava minha cobertura capilar tão mutante: aloirada na infância, castanha na adolescência, preta na idade madura e agora, apenas agora, com pingos esbranquiçados do pouco que restou e que não se foi nas mãos molhadas do tempo – é o início de nova etapa onde o que restará, além das lembranças, talvez seja o que construí como efêmero homem vivente neste mundo de imperfeições concretas e de perfeitas abstrações da irrealidade que teimamos achar que somos.
Não sei quem sou. Não sei o que fui. Nem sei se serei daqui a instantes... E agora o que sou? Sou vivente estando errante? Sou fervente e me faço ultrajante? Sou latente ou lobo distante e ofegante? Sou meu próprio mal ou casual e benigno suspiro que surge da minha premente necessidade de existir? Existir com ou sem você, isso é essencial! Não sejamos mesquinhos nem egoístas, crendo ou fazendo crer que não é assim.
Sou constante. Faço-me mutante na tentativa de merecer o que tento deixar de ser, sem fenecer. Sou o que querem que eu seja, mas não sei se sou o que devo ser, ou se o ser que sou causa em você o bem que deveria somente a mim, comover. Contento-me com o seu pouco, pois, aos poucos, torno-me senhor sem você se aperceber. Somos criaturas ou meros cataclismos das criações de nós mesmos? Somos figuras e tipos criados ou nossos próprios dissabores inventivos?
A noite, onde outrora sol havia, cega-me! As fontes límpidas que postergavam o asqueroso produto final das ações humanas, das nossas desmedidas agressões, esgotam-se. Lodosas paisagens castigam minha visão; as pesarosas visões são grudentas e, por repetidas vezes, faço digressões. Minhas ponderações introspectivas são tão cruas e nuas quanto me sinto agora: desnudo homem que se alija de si mesmo, sorrateiramente, tentando resgatar um futuro previsível e forte que não nos dá alternativa senão a morte.
Somos mortos-vivos. Vivemos novas vidas a cada morte. Estamos entregues à nossa própria sorte por consorte invisível que, por mero capricho, não nos quis bicho, mas homens de porte! De porte e de posse... Posse de desvalores que nos causam horrores inimagináveis e desmedidos – nossa cegueira racional. Somos lobos ou não somos maus? Somos a origem da desordem ou nosso próprio caos?
Fica a ponderação inconsistente, pois minha vida é vida ardente que se faz não por meros e potenciais caprichos decorrentes do meu medo de viver. Minha vida se faz a cada dia... No meu amanhecer não existem falhas, não existem navalhas, nem canalhas nem muralhas... Na minha vida existe superação, animação, dedicação e ação.
E se as falhas me limitam as superações, devo reinventar o que chamamos de erro; se as navalhas me ferem o ânimo, ceifando-me o mínimo da vontade de vencer, reinvento o processo de coagulação e navego no corte das doloridas máculas da minha própria carne; se os canalhas pensam que estou inerte, que jamais me levantarei contra eles; esquecem-se de que dediquei minha vida inteira ao mais nobre dos valores, lutando, sempre, contra tudo que se ergue através do mal; se as muralhas que a vida nos impõe parecem fortes e intransponíveis, eu as desafio, pois a ação dos ventos – e sou um sopro de vida – revela a todos, através da história, que a sucessão de pequenos fatos é quem define o verdadeiro vencedor.