Uma carta para o amigo Amado

Dizem que sou um catador de palavras, mas ultimamente não as tenho encontrado nem em meus momentos de devaneio absoluto. Acho que elas estão tão escondidas de mim quanto o sol e a lua, em noite de chuva densa e fria. Mas, porém, todavia, contudo vou lhe contar o que tenho feito no desfeito de cada dia.

Às vezes me levo para a esquina da rua Um de uma cidade chamada Bem-querer e, como um qualquer, fico imaginando o que poderia estar passando pela cabeça daqueles transeuntes, até então, ilustres desconhecidos dos meus afazeres diários. Este é, para mim, um exercício de relativa complexidade, que procuro realizar de vez em quando na mesma rua e, se possível, no mesmo lugar: ali naquele cantinho já quase desbotado pelo tempo manhoso. O interessante é que, quando chego, as pessoas me olham com total desprezo porque muitas vezes fico de cócoras, como se fosse fazer cocô – como uma criança: uns riem, outros mandam beijinhos, outros fazem caras e bocas, outros me dão dinheiro como se eu estivesse ali pedindo algumas moedas de pouco ou nenhum valor econômico ou religioso. Com o passar das horas percebo que aquelas criaturas que por lá passam são sempre as mesmas (vão e vem), só que quando voltam as reações ficam sem as devidas proporções. A admiração e o espanto caem por terra na mesmice do dia a dia, o que me deixa pensativo e me faz voltar àquele refúgio semi-sinistro. Minha angústia é saber que todas aquelas personalidades um dia vão morrer, assim como eu, e de um jeito ou de outro. Algumas cometerão suicídio coletivo mas outras, provavelmente morrerão à míngua, na sarjeta de uma rua desconhecida, ainda assim, nada disso faz com que elas ou eu mudemos o rumo dos nossos “encontros” emblemáticos.

Alguns pensamentos que me vêem à cabeça, me deixam com os neurônios embotados. Imagina você que quando vou para lá, vou completamente vazio de mim, sem um único argumento delineado ou mesmo um breve rascunho de meias palavras guardado nas mangas suadas da camisa, esfarrapadas, de cores obsoletas. Lá permaneço tão enfático quanto à Estátua da Liberdade em pleno sol de verão americano. Quem sabe sou um morto-vivo ou um vivo morto?! Pode ser que eu já tenha falecido há séculos para aquelas pessoas: é como se eu fosse um a mais ou um de menos – o que não faz o menor sentido prático, por isso, tanto faz – tudo é relativo, abstrato e anguloso nessas horas de fastio desmedido. Na cabeça dos outros, ali parado, devo ser mesmo um zero a esquerda, um serzinho sem razão aparente definida. E para mim? Quem são aquelas beldades enfadonhas?! Na maioria das ocasiões as vejo como bichos. Como o elefante que vi no zoológico no último domingo em companhia de minha mulher e de minha filha de dois anos de idade, que fez uma observação no mínimo curiosa: “parece que ele só tem bunda”.

Mesmo sabendo que podemos morrer a qualquer instante, não fazemos nada para mudarmos a situação da inércia que nos faz acomodar e achar que está tudo bem. Às vezes eu olho para mim e me pergunto: o quê estou fazendo aqui nessa rua de ninguém? O quê essas criaturas estão pensando de mim? Para onde vão, se é que vão... Nesses momentos me dou conta do abismo que existe entre mim e aqueles seres viventes e nada mutantes. É como se nós fôssemos os verdadeiros paquidermes... quando balanço a tromba para a direita as pessoas estão caminhando para o sul, quando viro o nariz para a esquerda, estão marchando para o norte, e aí, só vejo as bundas. Umas maiores outras menores, estão sempre de costas uns para os outros ou seja, sempre caminham na contramão do que poderia ser o ideal. Assim somos nós: imortais Elefantes vagando por ruas sem nome, como se elas fossem desertas demais para nos vermos e nos darmos as mãos e brincarmos de ciranda como faziam nossos queridos avós nas tardes de domingo e no Dia dos Pais. Que doideira!

Confesso que todos esses questionamentos e delírios tem me deixado obtuso, como se em mim existisse um vazio existencial profundo ou até mesmo profano (na medida em que observo só as bundas). Na verdade estou sendo incoerente comigo mesmo, parece que estou buscando a felicidade nos outros. Parece que as minhas ruas são todas sem saídas, ruas que não se encontram, que não se cruzam nem no infinito das paralelas. Provavelmente irei voltar àquela rua milhares de vezes, talvez eu esteja procurando a mim mesmo, talvez eu tenha me esquecido em algum canto remoto, talvez eu volte lá com outra cara e quem sabe nos encontremos de verdade? Quem sabe eu encontre com algum Sócrates que esteja disposto a arrancar as minhas verdades ou até mesmo as minhas mentiras que certamente são os meus maiores argumentos. Amanhã é feriado Nacional. Devo ir para lá novamente na esperança de encontrar alguém que grite comigo e me arranque do avesso da faca.

Eh meu amigo, na esquina onde fico, coloquei uma placa enorme que diz: todas as ruas são iguais, mas ainda assim, os homens não precisam necessariamente serem totalmente diferentes! Mas nada disto justifica tamanha inquietude pois, andarmos de um lado ao outro, mesmo sendo pisoteados, não significa estarmos juntos.

Um certo dia eu desejei ser Deus para mudar todas as coisas de lugar, para trocar o nome de todas as pessoas – fazer novos registros, mas logo vi que jamais serei um deus e que de nada adiantaria tais mudanças se eu voltasse para lá do mesmo jeito, com a mesma roupa, com as mesmas ideias¸ mas ainda assim eu direi: meu amigo Amado, viva a vida intensamente, seja ela branca ou preta porque a rua onde morreremos não precisa ser nem a sombra da 5ª Avenida.

BSB, 06/08/13

Um grande abraço.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 06/08/2013
Reeditado em 12/08/2013
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